A Medida Provisória nº 934/2020, em 27 de maio de 2020, que dispensa as escolas e as instituições de ensino superior do cumprimento de 200 dias letivos previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação do País em virtude da Pandemia-COVID 19, tem como relatora a Deputada Luisa Canziani (PTB/PR) que elaborou o Projeto de Lei de Conversão (PLV) com as alterações no texto –base, aprovado em 30 de junho de 2020.
Os destaques que poderão modificar o texto, ainda serão aprovados, posteriormente, em data a ser definida. O PLV deverá ainda ser aprovado pelo senado e convertido em lei por sanção do Presidente da República.
Com esse fato novo, introduzimos mais uma importante discussão sobre as possibilidades legais para a reorganização do calendário escolar. Depreende-se que, mesmo considerando a autonomia dos Sistemas de Ensino, estes não poderão passar por cima da exigência do cumprimento dos dias letivos sem uma lei nacional, tendo em vista o inciso I, art. 24 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB/96.
“Art. 24 A educação básica, nos níveis fundamentais e médios, será organizada de acordo com as seguintes regras comuns; I – a carga horária mínima anual será de oitocentas horas, distribuídas por um mínimo de duzentos dias de efetivo trabalho escolar, excluído o tempo reservado aos exames finais, quando houver. ”
Observa-se que a referida lei estabelece correspondência biunívoca entre o cumprimento da carga horária e o ano letivo. É conveniente registrarmos o problema colocado do ponto de vista prático, qual seja a impossibilidade de retomada de 100% presencial do ano letivo de 2020, embora permaneça a obrigatoriedade de 800 (oitocentas) horas letivas que não disporão de 200 dias letivos para seu cumprimento.
O referido PLV ratifica a MP 934/2020 ao desobrigar todas as redes de educação básica no país de cumprirem o mínimo de 200 dias de efetivo trabalho escolar, desde que mantida a carga horária mínima anual de 800 horas ou a estabelecida pelos respectivos sistemas de ensino, e acrescenta que a integralização da carga horária mínima do ano letivo afetado poderá ser feita no ano subsequente, inclusive por meio da adoção de um continuum de duas séries ou anos escolares, observadas as diretrizes nacionais editadas pelo Conselho Nacional de Educação – CNE, a Base Nacional Curricular Comum – BNCC e as normas do respectivo sistema de ensino. Ocorre aqui a vinculação entre os anos letivos, ratificando o entendimento de que o ano letivo não corresponde ao ano civil.
Na mesma forma da lei, eis o art. 23 da Lei de Diretrizes e Bases – LDB/96, transcrito ipsis litteris:
“Art. 23 A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, em que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. §1º A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas curriculares gerais. § 2º O calendário escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta lei. ”
Como podemos ver, a proposição do PLV, relativa aos dias letivos, já figura no §2º, art. 23 da LDB/96, citada acima, razão pela qual, entendemos que caberia aos sistemas de ensino o reexame da permitida possibilidade legal.
O mérito do PLV está em garantir segurança aos dirigentes dos sistemas de ensino para implantar o disposto. No entanto, não basta traçar estratégias para o retorno às aulas, sem uma deliberação nacional que garanta aos Estados e Municípios solução legal ampla e flexível o suficiente de reorganização do tempo escolar.
O inciso primeiro do caput, citado acima, nos remete ao instituto da reclassificação, ou seja, com grande amplitude, são oferecidas às instituições de ensino, procedimentos inteiramente válidos e aplicáveis, tanto ao progresso dos alunos, pela aprovação, com pleno sucesso, quanto ao socorro àqueles alunos que, pelas mais diversas causas, não conseguiram continuar os estudos, aplicando-se, para estes, a reclassificação como garantia de seu prosseguimento no ambiente escolar. O que importa é assegurar, nos termos da Lei nº 9394/96, as condições necessárias ao direito à educação.
Admitir a reclassificação é admitir que, infelizmente, muitos alunos foram abandonados pela escola, ou a abandonarão, ou foram afetados por grandes tragédias humanas durante a pandemia, portanto as escolas precisarão presidir o esforço de avaliar o processo de desenvolvimento individual do aluno e dessa forma dar-lhe garantia de continuidade dos estudos.
O art. 23 da LDB/96 traz em seus dois incisos o estimulo à diferenciação pedagógica e ao efetivo fortalecimento da autonomia institucional. A adoção pelo PLV de medidas regulatórias sobre a questão do processo avaliativo classificatório permitiria o avanço progressivo dos estudantes conjugando os elementos de idade e aproveitamento com uma reorganização didática.
Sem nos aventurarmos numa conclusão aligeirada, considerando regras ainda por serem definidas devido a imprevisibilidade de uma guerra de saúde pública, aventamos alguns questionamentos que no nosso entendimento devem ser considerados, quais sejam: De que maneira essa carga horária de 800h será cumprida? Como ficam as instituições que não iniciaram as atividades escolares por falta de condições de realizar atividades curriculares não presenciais?
Quanto à adoção de um continuum de duas séries ou anos escolares, entende-se que essa é uma alternativa viável, mas como replanejar a organização do ensino em semestres, ano ou ciclos, sem repensar a promoção e a reprovação?
Operacionalmente, o que mais dificulta a adoção de uma flexibilização do calendário escolar é a organização de uma nova sequência curricular que por sua vez, neste caso, implicará mudar a organização didática, a sistemática avaliativa, sem falar que será necessário repensar toda a rotina escolar, preparação de recursos humanos e adequação de infraestrutura.
A lei prevê uma reorganização didática, emergencial, embora com previsão no art.23 da LDB, esses novos arranjos escolares deverão ser legislados pelos respectivos sistemas de ensino, tendo em vista as diferenciações locais e regionais de avanço da pandemia nos Estados e Municípios. Ainda assim, pergunta-se, será esta proposição suficiente para dar conta dessas diferentes situações e condições de funcionamento das instituições escolares do país?
O PLV em muito avança nos aspectos políticos e estruturais ao estabelecer
a reorganização do orçamento da educação e nova rotina para a educação básica a partir das perdas previstas.
No entanto, nossas indagações, ainda sem esboçar uma conclusão em definitivo, nos remetem a pensar que uma mudança de tamanha envergadura na base legal de organização da educação básica precisa considerar que as instituições de ensino para que possam dar sequência ao calendário de acordo com a sua realidade e no tempo necessário à integralização dos estudos, precisarão de um novo parâmetro a ser fixado segundo os efeitos temporais reais produzidos pela gravidade da pandemia na educação escolar, e a consequente adoção de medidas sanitárias para a garantia da vida. Assim, o movimento de retomada deverá ser subsidiado por evidências científicas incontestáveis.
Mesmo vivendo um período de incerteza em relação ao presente, precisamos ter previsibilidade em relação ao futuro, e, pelo visto, a estabilidade está na LDB.
A rotina da educação básica mudou e não será mais a mesma, mas é primordial que todos saibam e reconheçam que essa mudança acontece numa conjuntura insegura e grave, e que, portanto, é o momento de a escola repensar sua proposta pedagógica, reorganizar o seu currículo, suas práticas metodológicas e de avaliação, a fim de garantir o direito à aprendizagem.
O caminho da legalidade está sendo tentado, com a aprovação do PLV, mas ainda muito desordenado para todos que responsavelmente, precisam concretizar essas determinações.
Régina Galeno é pedagoga e membro do Conselho Estadual de Educação do Maranhão