Fundados sob o mito do destino manifesto, segundo o qual sua nação teria sido escolhida por Deus para liderar o mundo, os Estados Unidos ainda mantêm essa crença. A persistência é evidente não só pela postura militar internacional de embate à Rússia e à China, mas também dentro de seu próprio país, pelo mau trato aos seus cidadãos.
As práticas de imperialismo estadunidenses foram tema do episódio desta quarta-feira (11) do Mundioka, podcast da Sputnik Brasil apresentado pelos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho.
Em entrevista, a professora de relações internacionais do Ibmec São Paulo Karina Calandrin explicou que os primeiros sinais do imperialismo norte-americano se dão na sua marcha para o oeste a partir do destino manifesto, doutrina que prega a expansão dos colonos estadunidenses pela América do Norte fundamentada em uma vontade divina.
“O destino manifesto estabelece uma visão de fato religiosa da criação dos Estados Unidos enquanto país. A política estadunidense ali no final do século XVIII, no século XIX, foi muito pautada nesse aspecto.”
Essa expansão territorial, lembrou Carlos Eduardo Martins, professor associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), professor visitante da Universidade Johns Hopkins em 2022 e pesquisador do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), não se deu de maneira pacífica.
Pelo contrário, foi eliminando os povos originários e levou à guerra com o México, após a qual incorporou cerca de 55% do território mexicano a partir do Tratado de Guadalupe Hidalgo.
Ao mesmo tempo, logo os EUA procuraram afastar as potências europeias do cenário geopolítico americano. É a chamada Doutrina Monroe, “na qual as pretensões expansionistas também estão contidas”, classifica Martins.
“Os Estados Unidos se colocam na condição de falar sobre os conflitos que se dão nesse espaço e iniciam de fato uma trajetória expansionista, seja para o oeste, seja para o sul e para o norte, e para o Caribe.”
Imperialismo à la americana
Ainda que tenha passado por um período de expansionismo territorial no século XIX, o modelo que definiu o imperialismo estadunidense não foi um de dominação de territórios, como o europeu, caracterizado pela Conferência de Berlim, mas sim um de expansão de poder e de mercado consumidor, afirmou Calandrin.
Isso não quer dizer, no entanto, que o poder militar é desconsiderado dentro da doutrina imperialista dos EUA. Na verdade é o oposto: o militarismo estadunidense é extremamente aflorado, mas em vez de conquistar territórios, ele demarca as posições norte-americanas por todo o globo e é utilizado para interferir em assuntos locais.
“A cada cinco a dez anos, os Estados Unidos se envolvem numa guerra. A história norte-americana é uma história de guerras”, afirma Martins.
Nesse sentido, afirma o professor da UFRJ, a presença de bases militares estadunidenses escancara a ocupação física norte-americana. “Não há nenhum outro precedente na história da humanidade de um país que tenha colocado forças de ocupação militar em um espaço tão amplo no mundo como fazem os Estados Unidos.”
EUA × China e Rússia
Segundo Calandrin, os EUA têm na base da sua diplomacia o conceito de realpolitik como postulado por Henry Kissinger, figura da política norte-americana do século XX que ocupou cargos tanto nos governos do Partido Democrata quanto nos do Partido Republicano, isto é, a partir do realismo do poder bélico.
Isso coloca os norte-americanos em oposição à China, que atua a partir do pragmatismo econômico. Um exemplo disso é como ambas as nações se posicionam no Oriente Médio. Os chineses, a partir de sua diplomacia, conseguiram reaproximar o Irã e a Arábia Saudita, lembra a professora do Ibmec.
“Já os Estados Unidos sempre apostaram mais no conflito, utilizando os países no Oriente Médio, na Ásia, na África, de modo que entrassem em conflito e atendessem aos seus próprios interesses de poder.”
Nesse ponto, a ascensão chinesa, ainda que na Ásia, incomoda muito os Estados Unidos, por conta de sua proximidade com a Rússia, que pode fazer a ponte entre o mundo europeu e o mundo asiático.
“Por isso a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] foi criada. Um dos princípios da OTAN era impedir a vinculação da Alemanha à União Soviética, e com o fortalecimento da China, tornou-se absolutamente fundamental impedir essa conexão China-Rússia-Alemanha“, diz Martins.
Com o colapso da União Soviética, lembra o pesquisador, houve conversas sobre fraturar a Federação da Rússia. Em 1997, o cientista político Zbigniew Brzezinski, conselheiro de Segurança Nacional dos EUA durante a presidência Carter (1977–1981), publicou um artigo na Foreign Affairs propondo a partição do território russo em três repúblicas: uma europeia, uma siberiana e uma do extremo leste.
“Os Estados Unidos não podem aceitar a presença de um Estado com essa dimensão territorial, com esse poder geopolítico de conexão que a Rússia tem nessa conexão entre a Europa e a Ásia.”
O antagonismo à Rússia, ressalta Martins, não se dá somente por sua capacidade de conectar ambos os polos, mas também por sua recuperação geoeconômica, que levou os Estados Unidos a expandirem a OTAN para o leste e cercarem a Rússia.
“A Rússia”, diz Martins, “vinha se colocando como um poder que se recuperava do desastre da adesão ao neoliberalismo e que retomava suas prerrogativas de Estado nacional”.
“E se convertia em um forte exportador de petróleo e gás, de alimentos, de armas. E tinha na Europa um grande mercado para esses bens.”