Captura desviaria recursos do ministério para impulsionar candidatos conservadores nas eleições municipais de 2024. Mas há outro fator decisivo: a transição tecnológica, que pode tanto revigorar o SUS quanto escancarar as portas para sua privatização por dentro
Na semana que passou, escancararam-se as especulações em torno de uma suposta troca de comando no ministério da Saúde, a partir de pressões de “forças ocultas” da política brasileira. O presidente da Câmara dos Deputados e líder principal do “Centrão”, Arthur Lira, encheu a mídia de blefes a respeito de seu interesse em garantir o ministério para seu grupo político. Ao mesmo tempo, a ministra do turismo, Daniela Carneiro, também integrante do grupo, jogou seus dados, fazendo chegar ao público a notícia de que aceitaria sair da pasta, mas com uma “recompensa”: a Diretoria Geral dos Hospitais Federais do Rio de Janeiro, riquíssimo manancial de verbas e alvo de pesadas disputas políticas nos bastidores que antecederam a nomeação do atual diretor, Alexandre Telles. O que está por trás destes movimentos? Qual seu timing preciso? E que consequências adviriam de uma hipotética cedência de Lula?
Um artigo escrito em coautoria pela cientista Sonia Fleury – uma das pioneiras da Reforma Sanitária – e pelo médico e professor Luiz Antonio Neves, ex-prefeito de Piraí (RJ) ajuda a decifrar a questão. Sonia e Luiz Antonio participaram com destaque de uma reunião plenária em que a Frente pela Vida (FpV) examinou o tema, na última quarta-feira (14/6). Seu texto, que será publicado nas próximas horas em Outras Palavras, também ajuda a compreender, de forma mais ampla, a involução das instituições políticas do país. Mostra como os interesses fisiológicos do “Centrão” articulam-se com os apetites de medicina de negócio, no esforço para privatizar o SUS por dentro. Apontam como tais práticas ameaçam corroer a frágil democracia brasileira. E propõem um antídoto: a mobilização social, especialmente nos dias que nos separam da 17ª Conferência Nacional de Saúde e em seus desdobramentos.
Com dotações de R$ 162 bilhões em 2023, o ministério da Saúde é o menos pobre da esplanada, em despesas correntes (mas apenas o quinto, em investimentos). A isso deve-se acrescentar, lembram Sonia e Luiz Antonio, sua imensa capilaridade, fruto do próprio caráter federalista do SUS. As despesas com Saúde são comandadas principalmente por prefeituras e governos de Estado. Mas a fonte de recursos central é a União, que repassa verbas aos demais entes por meio do Fundo Nacional de Saúde. Quase nenhum dos 5.568 municípios brasileiros é capaz de manter os gastos do SUS sem contar com ele.
O ministério da Saúde é, portanto, crucial. Se gerido com espírito republicano, como sob a ministra Nísia Trindade, contribui para dar conforto e construir cidadania entre 160 milhões de brasileiros que recorrem exclusivamente à Saúde pública. Mas se aparelhado para fins eleitoreiros, suas verbas transformam-se em instrumento de chantagem e interferência política espúria. Basta, por exemplo, que irrigue os prefeitos “amigos” e que dificulte o acesso dos adversários a recursos indispensáveis.
Esta ação pode, aliás, ser complementada por outra, a cargo dos próprios deputados e senadores e apontada em reportagem recente da Folha de S.Paulo. Consiste em utilizar as emendas parlamentares, que deveriam beneficiar os municípios, não para seus prefeitos – mas a grupos opositores, que as recebem por meio de entidades civis. A matéria descreve o caso de Amargosa, no interior da Bahia. Lá a Codevasf, alimentada por estas emendas, entrega máquinas de irrigação para grupos políticos ligados a ruralistas enquanto mantém na seca a prefeitura, do PT. Basta imaginar estas práticas multiplicadas pela ação nacional do ministério da Saúde para entender como podem manipular as eleições de 2024, cujas alianças começarão a ser definidas nos próximos meses.
O texto de Sonia e Luiz Antonio chama atenção, a seguir, para um papel mais estratégico do ministério da Saúde: o de definir a configuração futura do SUS – limitando ou ampliando, em especial, a presença da medicina de negócios em seu interior. Os autores descrevem o enorme esforço já realizado por Nísia para recuperar a pasta dos desmandos bolsonaristas. Mas destacam com igual vigor a importância do Complexo Econômico e Industrial da Saúde (CEIS), cuja ampliação é um compromisso de Lula. A partir das encomendas do SUS, lembram eles, o Brasil pode (re)construir uma vasta indústria de medicamentos, vacinas, insumos, equipamentos hospitalares, de diagnóstico e a vasta gama de serviços ligados a eles. Isso será ainda mais importante dado o grande salto tecnológico diante do qual está a Saúde. Nos próximos anos, práticas como as teleconsultas e o uso da Inteligência Artificial irão se tornar onipresentes.
Se bem planejadas, podem ajudar a oferecer serviços de excelência à população e, de quebra, contribuir para a luta contra a reprimarização econômica no país. Caso contrário, desumanizarão os serviços, alienando os profissionais de Saúde da relação com os pacientes e servindo como cavalo-de-tróia para invasão do SUS por corporações privadas. Aqui, é interessante refletir em como entrelaçam-se os interesses da política mais fisiológica com os da medicina de negócios. Sonia e Luiz Antonio lembram, a respeito: “devido à incapacidade do mercado de planos e seguros de saúde de ultrapassar a cobertura além de ¼ da população, mesmo com os subsídios governamentais, sua possibilidade de expandir a lucratividade depende da disputa dos fundos públicos da saúde”…
Há por fim, na investida do Centrão, uma terceira ameaça: a que atinge a própria democracia brasileira. Os autores chamam atenção para uma “conjuntura de disputa político-eleitoral permanente”, na qual “as forças que perderam as eleições presidenciais, mas que são majoritárias no Congresso, buscam emparedar o governo Lula, esvaziando sua força política e impedindo, assim, o cumprimento do programa reformista para o qual foi eleito”. O que está em jogo, demonstra o texto, é “o poder de transformar o país em uma democracia social ou de continuar minando a democracia eleitoral por dentro, destruindo a inteligência do aparato estatal, desmontando as políticas de proteção social, inviabilizando investimentos e construção de uma economia nacional competitiva e uma nação soberana”. O artigo adverte: antecipa-se assim “o cenário eleitoral para as próximas eleições presidenciais que permitiria o retorno de um governo de direita. Esse jogo já está sendo jogado”.
Lula cederá? A depender de sua própria vontade e espírito de sobrevivência, é certo que não. Mas o jogo institucional é bruto. Por isso, Sonia e Luiz Antonio chamam atenção para a necessidade de incluir, no cenário, um elemento hoje ausente: a mobilização social em favor das reformas. E há um cenário muito promissor para exercê-la: a 17ª Conferência Nacional de Saúde (em Brasília, de 2 a 5 de julho). Uma mobilização importante, frisa o texto, já começou nas primeiras etapas (municipais, estaduais, setoriais, e mais de cem “conferências livres”) do grande evento. Este processo se dá, até o momento, sob o silêncio das mídias comerciais.
Mas poderá desabrochar, concluem os autores. Para isso, é preciso que a 17ª Conferência desencadeie ações capazes de demonstrar “que saúde não é mercadoria e que o ministério da Saúde não será moeda de troca, pois o SUS é a maior conquista democrática da nossa sociedade, exatamente porque foi construída no seio das lutas sociais pela democracia”.
(*) Por Gabriel Brito e Antonio Martins, do site Outras Palavras
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