Se já se tornaram banais e frequentes as cenas de fúria verbal de Bolsonaro contra jornalistas, principalmente mulheres, esperemos que se repitam e de modo algum se tornem habituais as novidades desta semana no Rio Grande do Norte, com duas crianças, uma de seus dez anos de idade, a outra ainda de colo.
Numa aglomeração em que não deviam estar, a menina de dez anos presumíveis começava ou ia começar a declamação de alguma coisa quando Bolsonaro, sentado perto dela instou-a com um gesto a baixar ou retirar a máscara que usava (ele, naturalmente, estava sem máscara). A menina obedeceu.
Na mesma aglomeração, a criança de colo foi levada para uma selfie ao colo de Bolsonaro, que já estava em pé, sempre sem máscara, andando meio aos empurrões entre os circunstantes. Bolsonaro tomou de imediato, sem pedir licença aos pais do bebê, a iniciativa inqualificável de tirar-lhe a máscara.
No dia seguinte, as duas cenas já tinham sido vistas por muita gente, no Brasil e fora dele, mas ainda não tinham chegado à mídia internacional. O Guardian, por exemplo, hoje um dos mais influentes jornais do mundo, com 8 milhões de leitores no mundo inteiro em suas edições digitais, dava como sua principal manchete sobre a Covid, a expectativa em torno dos trabalhos da CPI do Senado, dando a impressão de que o noticiário está sempre atrasado em relação aos atos de Bolsonaro.
Não podemos ter dúvida de que o Estatuto da Criança e do Adolescente considera criminosas tanto a conduta de Bolsonaro quanto a atitude condescendente dos pais dessas crianças. E também não podemos ter dúvida de que mais uma vez a conduta de Bolsonaro configurou, além do crime comum, um crime de responsabilidade sujeito ao impeachment.
Apesar disso, o caso já estava no rumo do silencio e desaparecimento na tarde de sexta-feira quando a CPI da Covid abriu a sessão destinada a ouvir os depoimentos do deputado Luís Miranda e de seu irmão Luís Ricardo Miranda, alto funcionário do Ministério da Saúde, sobre possíveis irregularidades (e corrupção) na compra da vacina indiana Covaxin. Aí, novos acontecimentos enterraram ainda mais o caso das crianças.
Os depoimentos e as próprias perguntas aos depoentes deixaram menos respostas que novas e graves perguntas, abrindo novas e amplas perspectivas de investigação pela CPI.
Por exemplo, o deputado e seu irmão funcionário do Ministério da Saúde denunciaram a Bolsonaro, em encontro presencial no Palácio da Alvorada, que esse irmão sofrera pressões de seus superiores imediatos para acelerar e liberar a importação da vacina indiana Covaxin. Bolsonaro respondeu que o caso era grave e já tinha informações sobre possíveis irregularidades, que atribuiu a um deputado cujo nome citou, mas o deputado “esquecera”.
Bolsonaro acrescentou que levaria o caso imediatamente ao Diretor Geral da Polícia Federal, para que esta abrisse o inquérito necessário. Mas não levou, ou melhor, só pediu providências à Polícia Federal nesta sexta-feira, horas antes do depoimento dos dois irmãos à CPI. Além de não levar o caso à CPI, Bolsonaro acionou a Polícia Federal para investigar e eventualmente criminalizar os dois irmãos denunciantes, como anunciou publicamente pela TV o Secretário-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni.
Em tal situação, caberia a Bolsonaro informar quem era o deputado por ele acusado de ser o responsável pela falcatrua na importação da Covaxin. Bolsonaro não poderia ser convocado ou intimado pela CPI, mas poderia, em seu cercadinho diário ou por intermédio de algum porta-voz, identificar esse deputado e este, por sua vez, poderia ser chamado à CPI para contar ou confessar seu lado na história.
Mas isso não foi necessário, porque o deputado Luís Miranda acabou confirmando o nome do deputado citado por Bolsonaro. Não era qualquer obscuro parlamentar do baixo clero, era nada menos que o líder do governo Ricardo Barros, condutor da maioria cabisbaixa e obediente garantidora das decisões de interesse do governo e da blindagem de Bolsonaro contra o impeachment – um deputado mais poderoso, portanto, que o próprio Presidente da Câmara.
Nem na noite de sexta nem na manhã de sábado Bolsonaro tentou desmentir a autoincriminação implícita na referência ao responsável pela falcatrua. Bolsonaro deixara claro que sabia da negociata e sabia quem a conduzia e certamente se beneficiaria com ela. Como nada fez para impedi-la, tornou-se cúmplice dela e na manhã de sábado foi passear de motocicleta em Chapecó, Santa Catarina, na tentativa de minimizar o que a CPI ouvira na noite de sexta.
Ou seja, por trás do negacionismo estava um caso do que o jornalista Reinaldo Azevedo, um conservador acima de qualquer suspeita, batizou de negocionismo – bons negócios, lucros e propinas em troca de vidas humanas.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.