Apresentação da 2ª edição, editora Simbolo, São Paulo, 1977
Tia Gatona teve coragem de ir morar no local onde morriam os atacados pela bexiga negra. Depois que a peste varreu a cidade, nem ladrões tinham coragem de entrar na casa dos Bexiguentos: mas Tia Gatona lá se instalou, com o caráter aprendido do amante Sinfrônio de Almeida, caboclo justiceiro que limpou as tocaias de bandidos que iam de Minas Gerais à Bahia.
Nas veredas do grande sertão, por onde passavam as caravanas levando gado e riquezas, se agrupavam bandidos protegidos pelos comerciantes, para roubarem o que passasse pelos caminhos. Matavam os guias, escondiam os vestígios. Sinfrônio de Almeida, junto com Tia Gatona, e um grupo de homens armados, foi destruindo os aldeamentos suspeitos, só respeitando mulheres e crianças. E quando Sinfrônio de Almeida morreu, com uma frase interrompida na boca, ao falar sobre moços e crianças, Tia Gatona, sem ter para onde ir, arranjou-se na casa dos Bexiguentos e começou a cuidar dos meninos desvalidos, preparando-os para viajarem a São Paulo.
Remetendo essa mão de obra para outro local, querendo arrancar os meninos da escravidão econômica, Tia Gatona interfere na ordem social e prejudica o interesse dos coronéis donos da lavoura. É claro que, persistindo no seu plano, ela vai provocar ódio e vingança.
Essa situação de conflito é uma constante do livro.
De um lado, o povo querendo se libertar das profissões repugnantes e da eterna dependência econômica; e, de outro, os coronéis, conservadores, querendo deixar tudo como está, pois qualquer mudança poderá afetá-los desastrosamente.
Tia Gatona e Sinfrônio de Almeida são apenas duas, da extensa galeria de outros personagens, do livro, “Porto Calendário”. Há o épico Pedro-Voluntário-da-Pátria, João Imaginário, Doquinha Peste Bubônica [uma Cassandra do Sertão], Fernando Sessenta, Coronel Kelemente, Sussu Flores, que arranja amantes, dorme com eles, manda matá-los com o conhecimento do marido, Coronel Chico Fulô, que tudo sabe, mas tanto a ama, que a perdoa, persongens em enxurradas, que vão conduzindo cenas, que sempre acabam nas atuas do São Francisco, tudo com um cheiro forte cheiro de Brasil.
Ao lado da linguagem cheia de rupturas e pontuações não convencionais, segue, como uma correnteza caudalosa, a narração dos dramas dos personagens, transformando o romance em um dos mais sérios estudos socioeconômicos escritos no Brasil.
E, com a adoção de três elementos básicos, a linguagem, a apresentação de uma grande sequência de cenas e personagens perfeitamente identificáveis como brasileiros e extraídos da vida cotidiana, e o sofrido relacionamento entre o homem e o meio ambiente, o livro é uma proposta para um modelo de romance brasileiro.
Tendo por cenário a cidade de Santa Maria da Vitória, situada à margem esquerda do Rio Corrente, cujas águas se misturam com as do São Francisco, são apresentados os párias da região, a casta dos remeiros que empurram rio acima e rio abaixo os barcos com as mercadorias que, dramaticamente, precisam se vendidas, e os coronéis carecidos de mão de obra que matam aqueles que, como Tia Gatona, preparam meninos desvalidos para irem a Ribeirão Preto aprender a vida.
Num ritmo de Macondo, o Brasil vai surgindo através de episódios como o das queimadas feitas com o propósito de matar fugitivos, com soldados espancando remeiros a mando de seus patrões, com quinze homens ensanguentados dormindo numa ilha desabitada ao lado daqueles que mandara agredi-los; ou com a sequência fantástica de Sá Inês, surrada até morrer, por causa de um retrato que recebera do filho; ou ainda o plano cinematográfico do estupro da Liberdade, que termina em um dos mais belos monólogos da literatura brasileira, página de antologia.
Quem escreveu esse livro maravilhoso, que faz lembrar o “Dom Silencioso”, de Sholokov, “Cem anos de solidão”, de Gabriel García Márquez, cuja linguagem tem pontos comuns com “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa?
É um moço de 78 anos que vive num apartamento da Rua Heitor Penteado, em São Paulo, onde guarda o instrumento que formou seis filhos: a tesoura, já gasta, que durante mais de trinta anos cortou calças e paletós na Alfaiataria Rex, na cidade de Marília.
Durante anos ele costurou, de dia, botões, e de noite, personagens. Leu filósofos, ensaístas, romancistas, principalmente historiadores e os que falam sobre a região do São Francisco; e foi ele que escreveu a carta, “A espantosa, a estourada carta, mensagem dos cem mil cavaleiros”, a histórica carta enviada a Guimarães Rosa, publicada na revista Diálogo, nº 8, de novembro de 1957, em que analisa a obra desse outro são-fraciscano.
E é esse mesmo homem, com sua lucidez octagenária, que discute o problema da afasia, comum aos barranqueiros do São Francisco, transferida para a linguagem recriada do romance, analisando essa deficiência de comunicação que, com seus cortes e ligações inesperadas, cria imagens poéticas de grande valor para o receptor da mensagem, que compara esse fenômeno com os distúrbios paradigmáticos e sintagmáticos apresentados por Jakobson, nas suas teorias linguísticas.
E, por ter sobrevivido às ameaças de morte que recebeu por ter escrito “Porto Calendário”, Osório Alves de Castro, esse baiano que nasceu em Santa Maria da Vitória, e cresceu ouvindo a subversão da semântica, enquanto os barranqueiros são-franciscanos cortavam o tronco dos cedros para fazerem o oco das canoas, prossegue, na sua altiva modéstia, lendo seus livros de História, montando a estrutura do seu ensaio sobre geriatria, ou retocando, há meses, os seus romances prontos e inéditos, Bahiano Tietê [cuja edição chegou a ser anunciada com o título de “De manhã, em Correntina”], Nhonhô Pedreira, estória de todos os coronéis do Brasil, em Maria fecha a porta prau boi não te pegar, romance telúrico e fantástico, a partir do seu próprio título, que é o nome de uma planta do sertão são-franciscano, da família das sensitivas, que quando tocada pelos bichos ou lambida pelas águas do rio, suas folhas se defendem, fechando-se, mas sua raiz permanece no solo, vencendo secas e enchentes; e quando cai o sereno e a terra fica umedecida, a flor renasce, subindo aos telhados, às pedreiras.
Uma flor que simboliza a carreira literária de Osório Alves de Castro, um homem tímido, arredio, que nunca cavou a própria glória. E que publicou um único romance, este Porto Calendário, que pode ser atacado ou esquecido, mas sempre renascerá, tal a sua forma telúrica.
(*) Por Paulo Rangel
Transcrição:
Thaise Diamantino Coelho & Joaquim Lisboa Neto
Biblioteca Campesina, Santa Maria, 24abril2024.
(*) Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.