“É uma história branca”, observa a historiadora Ynaê Lopes dos Santos
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante”. Assim começa o Hino Nacional brasileiro, em alusão ao dia 7 de setembro de 1822, quando o Dom Pedro I bradou: “Independência ou morte”, tornando o Brasil uma pátria livre de Portugal. A história, no entanto, embora repetida e eternizada em pinturas, livros e até mesmo no hino do país, não é tão simples assim, segundo historiadoras entrevistados pela Agência Brasil. Não ocorreu em apenas um dia e envolve muitas disputas, interesses, questões sociais e econômicas que, de certa forma, perpetuam-se até os dias de hoje.
Naquela época, não havia estados, e o Brasil era dividido nas chamadas capitanias, criadas pelo rei português D. João III em 1534. Esses 15 lotes de terras foram entregues a pessoas de confiança da coroa responsáveis por desenvolvê-las, sempre em prol de Portugal. O sistema vigorou até pouco antes da data formal da independência, em 1822.
O Brasil, no entanto, após quase 300 anos da dominação portuguesa, prospera economicamente e passa a ter uma elite local que deseja usufruir cada vez mais da produção, sem precisar pagar impostos a Portugal. A própria coroa portuguesa estava presente no Brasil desde 1808, quando a família real fugiu da Europa por conta das invasões de Napoleão Bonaparte, o que distanciava ainda mais as relações com Portugal.
Segundo a historiadora Wlamyra Albuquerque, professora da Universidade Federal da Bahia (UFBA), na época, o Brasil se sustentava em dois pilares fundamentais: por um lado a produção açucareira e do café e, por outro lado, a escravidão. “Naquele momento estava na berlinda a manutenção de uma sociedade escravista agrícola e que demandava uma independência, uma autonomia política para fazer com que esses negócios continuassem funcionando, continuassem a ser muito lucrativos. A ruptura com Portugal é um arranjo para fazer com que esse território se transformasse em um país com liberdade econômica para continuar fazendo valer esses negócios baseados na escravidão”, diz a historiadora, que acrescenta: “Surgimos como nação para tentar manter os lucros com uma economia muito pujante na época, que era a economia açucareira e do café baseada no trabalho escravo.”
Adriana Barreto ressalta que não foram apenas as elites que tiveram um papel importante nesse acordo de independência. “A tese da ausência de lutas e de participação popular no processo de independência do Brasil se enraizou muito na análise do que se passou no Rio de Janeiro. As narrativas sempre destacavam as viagens e costuras políticas realizadas por D. Pedro com as elites de São Paulo e Minas Gerais. Todavia, se a gente foca sobre o que se passou nas ruas da cidade entre 1821 e 1822, é possível ver uma participação popular incrível”, diz a historiadora.
Escolha da data
O Brasil tornou-se independente de Portugal, mas seguiu tendo como imperador D. Pedro I e seguiu com a escravidão até 1888. A data de 7 setembro, como conta Adriana Barreto, foi uma escolha. “Uma data concorrente era o 12 de outubro, aniversário de D. Pedro. Foi nesta data que, também em 1822, ocorreu a aclamação do príncipe D. Pedro como imperador do Brasil. Mas, com sua abdicação ao trono, em abril de 1831, a partir de um movimento político liberal com forte base popular, o 12 de outubro foi extinto, e o 7 de setembro se firmou como data de fundação do Império do Brasil”, destaca.
Apesar da escolha de uma data, segundo as historiadoras entrevistadas, a independência foi um processo que durou anos. Prova disso é a celebração da Independência no dia 2 de julho, na Bahia. A data marca a expulsão, em 1823, das tropas portuguesas que ainda resistiam à Independência declarada no ano anterior, em um movimento que contou com a participação popular. Qualquer autoridade lusitana remanescente foi extirpada do poder.
O imaginário em torno da data, de um brado retumbante, um povo heroico, e, sobretudo, uma data capaz de unir toda a população, também foi uma construção.
“É uma história branca. Indígenas não aparecem, população negra não aparece. A própria ideia de povo está muito diluída, a gente não tem uma história dinâmica e polifônica”, observa a historiadora Ynaê Lopes dos Santos, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).
De acordo com Ynaê dos Santos (foto), é a partir da construção de independência e da formação do Brasil como país que vão sendo criados também os mitos de existência de uma sociedade pacífica, inviabilizando as várias disputas e revoltas que marcam a história brasileira.
Esses elementos também reforçam o mito de uma democracia racial no país, ou seja, que não existe preconceito por conta de raça, e que o racismo, quando se manifesta, é algo individual.
“Essa construção permite o exercício de poder de um grupo que construiu para si esse poder. O mito da democracia racial mantém a ordenação racista, mantém todos os privilégios, naturalizando esses privilégios”, diz ela. “Esse 7 de Setembro é a construção de uma história muito branca e elitista e é proposital.”
Para os indígenas, que já habitavam o Brasil antes mesmo de ele ser chamado Brasil, a construção do imaginário do 7 de Setembro é ainda mais excludente.
Segundo Ynaê dos Santos, todas essas questões precisam ser levadas em consideração nas comemorações da independência do Brasil. “Eu acho que o 7 de Setembro, por mais que seja uma data muito complicada, é um marco que ainda funciona para explicar uma série de questões. O que eu acho que precisa ser feito é um olhar crítico para essa data, entendendo que essa data não é fim do processo, porque é assim que a gente entende a independência do Brasil, como se começasse e terminasse no 7 de setembro. Ela é o início de um processo que vai se desenrolar durante muitos meses e só vai terminar no dia 2 de julho”, diz.
“É fundamental também que, junto com essa compreensão mais processual, traga outros sujeitos que participaram dessa história, para que a gente tenha inclusive uma compreensão mais profunda do dinamismo da história brasileira”, completa.
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