Em nosso último artigo por aqui mostramos toda a trajetória de construção do importante documento produzido pela ONU para enfrentar a escassez de professores e de professoras em todo o mundo. A partir da iniciativa do seu Secretário Geral, António Guterrez, ainda no ano de 2022, foi criado um Grupo de Alto Nível na ONU para fazer um exaustivo e amplo diagnóstico dessa triste realidade que, no limite, a maior parte dos países do mundo sofre. Após mais de um ano de inúmeras reuniões, que contou com a participação de entidades, organismos e personalidades ligadas ao campo educacional, foi possível construir um documento que, certamente, já está na história das Nações Unidas por sua amplitude de diagnóstico e concretude nas propostas indicadas como solução para esse problema mundial.
O documento da ONU conta com 59 recomendações aos seus países-membros, divididas em 11 grandes eixos. Como prometido no artigo anterior, vamos falar um pouco de todas essas recomendações e avaliar a sua aplicabilidade em um país como o Brasil. E quais os nossos desafios para, no fim das contas, termos condições reais de sua implementação por aqui, como políticas públicas perenes. Trataremos aqui, assim, do primeiro eixo desse documento, que abarcam 6 das 59 recomendações que foram lá elencadas pelo Grupo de Alto Nível constituído na ONU.
O primeiro eixo do documento foi chamado de “Permitir a Transformação da Profissão Docente”. É um apelo para que os governos de todo o mundo encarem a educação como um direito humano universal e inalienável e que, assim, deve ser criado um ambiente econômico e social favoráveis para que a profissão de professor seja realmente valorizada, já que se refere a um ator imprescindível para que aquele direito seja pleno. E esse ambiente favorável só pode vir por meio de políticas econômicas e sociais que fomente uma boa educação aos nossos povos. Daí que aparece a primeira Recomendação: políticas de financiamento adequadas e equitativas devem ser prioridade nacionais, de modo a permitir que as famílias tenham mais tempo de qualidade com seus filhos para apoiar o processo educacional feito na escola. Ao mesmo tempo, isso tem que vir acompanhado, segundo o documento, por políticas que assegurem o direito da população de ter boa saúde e acesso a uma alimentação de qualidade, além de estruturas favoráveis a conectividade das redes de ensino e, sobretudo, a profissão de professor ser e gozar de reconhecimento social.
A segunda Recomendação chama a atenção para que os governos sejam realmente efetivos em garantir o direito à educação. Nesse tópico, interessante notar que, para além de indicar a premência de os governos garantirem aos docentes o direito a um trabalho decente, ao seu exercício de negociação coletiva e à liberdade sindical conforme indicada nos tratados internacionais, o documento da ONU fala em garantir a liberdade de expressão e de pensamento acadêmico aos professores. O fenômeno recente que vimos no Brasil, e ainda infelizmente presente em muitos lugares, de perseguir e censurar professores no exercício de suas atribuições profissionais, o que por aqui ficou conhecido com aquele movimento do “Escola sem Partido” (conhecido também, nos lugares que disso foi feito legislação, de Lei da Mordaça), deve ser problema mundial.
A terceira Recomendação diz respeito ao fomento de vias de aprendizagem diversa, fugindo de uma concepção de educação marcada pelo individualismo e competição. Os sistemas educacionais devem promover os valores de cooperação e solidariedade, de modo que as escolas formem uma consciência social e ambiental a altura dos desafios que o Planeta exige. Empatia e ética foram outros valores que, segundo o documento da ONU, as escolas devem promover na educação da população dos países de todo o mundo.
Já a quarta Recomendação se refere aos esforços que os governos devem fazer em promover políticas educacionais integrais, em consonância com as estratégias e planos de educação globais. Aqui, ao contrário do que vimos na proposta do novo Plano Nacional de Educação (PNE), encaminhado pelo Ministério da Educação (MEC) recentemente, os participantes do Grupo de Alto Nível das Nações Unidas não se esquivaram em falar de uma educação inclusiva e equitativa, que promova a diversidade e a igualdade de gênero. A quinta Recomendação aborda a necessidade de os governos tratarem o déficit de professores nos países com absoluta prioridade, formando comissões nacionais e criando mecanismos para enfrentar tal problema.
A sexta Recomendação do documento indica a importância de os governos nacionais criarem sistemas de gestão e de informação sobre os professores de seu país. Instrumento fundamental para gerir e avaliar as demandas urgentes da falta de professores e das áreas de conhecimento mais afetadas. No Brasil, sabemos bem o desafio da ausência de professores e professoras na área das ciências exatas e, em especial, de Matemática. Seria essa uma demanda a ser enfrentada pelas redes de ensino estaduais e municipais, ou centralizada no âmbito do MEC, como gestor nacional da política pública educacional do país?
Como vimos aqui, esse primeiro Eixo das Recomendações da ONU para enfrentar o apagão docente no mundo já nos traz muitos elementos para pensarmos a nossa política educacional brasileira. Continuaremos nos próximos artigos a trazer as outras Recomendações dos outros Eixos desse documento tão importante quanto urgente. Até a próxima leitura!
(*) Por Heleno Araújo, professor, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e atual coordenador do Fórum Nacional da Educação (FNE).
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