Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas apontam que o conflito ucraniano, classificado por Donald Trump como “antessala do Armagedon”, não atrai votos por ser ofuscado por temas mais próximos do cotidiano da população e pela incursão de Israel na Faixa de Gaza.
A política externa dos EUA é um dos temas centrais das eleições presidenciais do país, com destaque para qual será o posicionamento do governo em relação à questão ucraniana após a ascensão do novo líder a ocupar a Casa Branca.
No último debate, os candidatos Donald Trump, do Partido Republicano, e Kamala Harris, do Partido Democrata, apresentaram visões distintas sobre o tema, sendo Trump a favor de encerrar o conflito o quanto antes e Harris a favor de manter o apoio de Washington a Kiev.
Paralelamente, no cenário externo, cresce o número de líderes que defendem acelerar as negociações de paz. O mais recente deles foi o chanceler alemão Olaf Scholz, que afirmou ser urgente encerrar o conflito “o mais rápido possível”.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam qual o impacto da questão ucraniana nas eleições americanas, qual o potencial do tema em atrair votos e o que esperar da atuação de cada candidato sobre o assunto, caso eleitos.
Pedro Costa Júnior, professor de relações internacionais e economia das Faculdades de Campinas (Facamp), enfatiza que o conflito ucraniano é parte de um conjunto de três pontos do governo Joe Biden-Kamala Harris que a campanha de Trump tem buscado atacar: a economia, mais especificamente a inflação; a imigração e a política externa democrata, que o especialista avalia como um “desastre”.
“A política externa Biden-Harris vai ficar marcada pela desastrosa retirada dos EUA na guerra do Afeganistão, aquelas imagens indeléveis daquelas pessoas dependuradas nas asas do avião tentando fugir do país, remetendo às cenas de Saigon, quando os EUA fugiram do Vietnã”, afirma o especialista.
Ele acrescenta que não há “uma derrota mais crassa” e clara para os EUA do que a retirada do Afeganistão, após 20 anos de guerra contra o Talibã, “que custaram muitas vidas e centenas de bilhões de dólares”, e que culminou na devolução do controle do país ao grupo radical.
“E tem as duas guerras de grandes proporções que foram iniciadas no governo Biden-Harris. A guerra de seu principal aliado no Oriente Médio, a guerra colonial na Palestina, iniciada por [primeiro-ministro israelense] Benjamin Netanyahu, […] que chegou a 40 mil vítimas civis agora, grande parte mulheres e crianças, […] e a guerra na Ucrânia, que não é uma guerra da Rússia contra a Ucrânia, é uma guerra da [Organização do Tratado do Atlântico Norte] OTAN, capitaneada pelos EUA, contra a Rússia, que acontece na Ucrânia. É disso que se trata, é isso que grande parte da população dos EUA já entendeu, e é isso que Trump, na sua campanha, expõe e coloca como um problema central.”
Ele aponta um artigo recente, escrito por Trump em parceria com Robert F. Kennedy Jr., que classifica a questão ucraniana como “um tema de prioridade absoluta e vital dos EUA e do mundo, porque se trata, segundo eles, da possível iminência de uma Terceira Guerra Mundial”.
O artigo, aponta o especialista, cita como justificativa para essa conclusão o fato de que os EUA e a OTAN abriram a possibilidade de que armas da aliança sejam usadas por Kiev para ataques em território da Rússia, algo que o presidente russo, Vladimir Putin, já afirmou que será entendido como um ataque direto da OTAN, passível de retaliação não apenas contra a Ucrânia, mas todos os países envolvidos como fornecedores de armas.
“Isso inclui, obviamente, os aliados europeus e os próprios EUA. E Putin fala, claramente, não só ele, como [Dmitry] Peskov, [Sergei] Shoigu, Dmitry Medvedev, todos os seus assessores, falam de, inclusive, [de uso de] equipamentos nucleares [na retaliação]. Ora, isso é, como se expressa nesse artigo de Kennedy Jr. e Donald Trump, uma espécie de antessala do Armagedon.”
Costa Junior ressalta que a crítica do artigo tem como base “o projeto megalomaníaco dos falcões, dos neocons dos EUA”, movimento político que defende intervenções militares como base para a política externa americana, que rompeu com o Partido Republicano durante a gestão Trump e atualmente apoia o Partido Democrata em sua campanha pró-Kiev.
“O que eles apontam [no artigo] é que a Rússia não é uma ameaça vital aos EUA, isso é uma construção desses neocons e dos democratas que se encontraram no governo Biden, que estão juntos no governo Harris, e que têm um projeto de poder, de dominação global, essas são as palavras [usadas no artigo], e que isso pode desencadear quase que inexoravelmente em uma guerra nuclear.”
Ele avalia que foi criado em torno da Rússia uma construção imaginária de ameaça, mas que o país não é uma ameaça de fato; apenas exige que a OTAN pare de “marchar para o leste”.
“Essa é uma guerra fabricada pelos democratas. A Rússia defende apenas que a Ucrânia seja uma zona neutra, uma zona tampão. Os democratas não respeitam isso, eles querem desestabilizar continuamente o governo russo.”
O especialista acrescenta que a estratégia da campanha de Trump no “debate eleitoral, que vale para ganhar votos, é deixar claro para a população americana que Trump tem um projeto de terminar essa guerra, que pelo potencial devastador que tem é a guerra mais importante do mundo desde a Segunda Guerra Mundial”.
“É a primeira vez que tem uma guerra na Europa que envolve, de alguma forma, as duas maiores potências nucleares do planeta Terra, a Rússia, diretamente, e os EUA, indiretamente, cada vez mais presentes.”
Conflito ucraniano não mobiliza o eleitorado americano
Embora seja um dos temas mais críticos para a política estadunidense, o conflito ucraniano não tem um alto potencial de conquistar votos, como aponta Costa Junior.
“O problema é que temas de política externa não são tão sensíveis prioritariamente em uma eleição, segundo as pesquisas, não mobilizam tanto o eleitorado, como a questão da inflação, da economia, do bem-estar, essas são as questões prioritárias. Então Trump tem que levar em conta que este é um tema importante, é um tema que sensibiliza, sim, mas não é o tema crucial das eleições.”
A opinião é compartilhada por Denilde Oliveira Holzhacker, professora de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Em entrevista à Sputnik Brasil, ela frisa que “o tema aparece com grande relevância nos debates, mas não está no centro da decisão do eleitor nessa eleição”.
“Ela [questão ucraniana] é muito [usada] para diferenciar posições e visões de cada um dos dois candidatos para os eleitores. Claramente, se Kamala ganha, não vai ter uma grande mudança em termos de política externa do que a gente tem com Biden, mas com Trump, sim”, afirma.
Ela destaca que a posição ambígua de Trump no último debate com relação ao apoio a Putin e à visão anti-OTAN do candidato republicano “fez com que os democratas usassem isso para mostrar que a política externa dele levaria a uma mudança drástica que afetaria o interesse nacional americano”.
“Então esse é um ponto que tem sido explorado. Mas ele atinge o eleitor mais esclarecido, formadores de opinião, […] temas como imigração, a questão de Gaza, têm mobilizado mais grupos de eleitores e podem ser mais decisivos do que a questão da Ucrânia.”
Holzhacker avalia que os posicionamentos de Trump são muito mais de impacto do que concretos, uma vez que ele, caso eleito, necessitaria do Congresso dos EUA para colocar em prática qualquer ação em termos de política externa, o que inclui suas propostas para a Ucrânia.
“Então acho que tem muito da retórica de campanha e pouco que de fato ele vai conseguir estabelecer. Mas a posição dele anti-OTAN é sim um fator que torna mais fraca a situação da aliança com a Europa e, consequentemente, com a Ucrânia.”
Movimento antiguerra nos EUA pode ser decisivo nas eleições?
A pressão contra o apoio dos EUA a Kiev e a Israel cresce a cada dia entre a população americana, principalmente entre o eleitorado jovem. Questionada como esse movimento anti-guerra pode afetar as eleições e a gestão do próximo presidente eleito, Holzhacker afirma que “de fato os jovens americanos têm se posicionado mais com relação a questões de conflitos, mas essa posição está muito atrelada à questão humanitária e menos às questões estratégicas”.
“A questão da guerra na Ucrânia tem menos peso do que a questão de Gaza, em função da atuação e do impacto humanitário que os bombardeiros israelenses têm. Então, acho que esse é um ponto que vai ser importante para a próxima presidência. Entrar em novas guerras é que vai ser mais custoso, e guerras com impacto humanitário grande, como de Gaza, vão ser mais custosas.”
Holzhacker acrescenta que, com relação a Ucrânia, “a questão vai continuar sendo como se chegar a uma solução”. Segundo ela, essa será uma questão que “vai passar pela negociação também com os europeus”.
Ela também diz concordar com analistas que, em entrevistas anteriores à Sputnik Brasil, apontaram que há uma grande possibilidade de o conflito ucraniano ser encerrado somente pela exaustão entre as partes, já que as exigências de cada lado tornam quase improvável alcançar um consenso.
“Exatamente porque ela [questão ucraniana] encontra aí todos os pontos e todas as dificuldades que a gente tem visto em outras áreas de uma busca de consenso. Então, se o quadro permanece o mesmo, se os atores continuarem tendo o mesmo tipo de postura, a gente vai ter muita dificuldade em se ter um acordo que seja visto como um acordo que as partes entendam como ganhos, tanto do lado ucraniano, quanto do lado russo e do lado europeu e dos americanos. Então é bastante provável que a gente ainda tenha um prolongamento dessa guerra”, conclui a especialista.