Participei recentemente de dois programas ancorados pelo jornalista e linguista Gustavo Conde, por coincidência, o último da série Giro das Onze (https://www.youtube.com/watch?v=8Pk_nggvMqU&t=6s (Giro das Onze | Gustavo Conde – Desespero: apagão, bombardeio e invasão por terra) e o primeiro da nova série Onze News (https://www.youtube.com/watch?v=R7jrd9pk8KA&t=342s (Gustavo Conde estreia seu novo programa e recebe o jornalista Luis Nassif, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos e o jurista José Geraldo de Sousa Jr para um debate sobre os novos desafios do governo Lula e sobre o massacre continuado de Israel sobre a Faixa de Gaza.), ambos os programas, tendo como centro de discussão, entre outros assuntos, o drama que se desenrola no Oriente Médio.
No debate que teve lugar, com os interlocutores convidados por Conde -Altamiro Borges, Salem Nasser, Luis Nassif, Boaventura de Sousa Santos – procurou-se compreender os antecedentes e as questões em curso desse conflito, que remonta a realidades anteriores a 1948 quando, por mediação das Nações Unidas (liderada pelo brasileiro Oswaldo Aranha) se definiu o desenho territorial político da Palestina, uma região historicamente ocupada por diversos povos, árabes, judeus, cristãos que, com a criação do Estado de Israel, foi territorialmente dividida em duas áreas, a Faixa de Gaza e a Cisjordânia.
Em que pese o potencial de desentendimentos que sempre cercaram esse processo, carregado de motivações, históricas, econômicas, estratégicas, culturais, religiosas, no momento da divisão da Palestina e até agora, muitas mediações procuraram estabelecer acordos de coexistência entre os dois campos, assim como os Acordos de Camp David, celebrado entre o presidente do Egito Muhammad Anwar al-Sadat e o Primeiro-Ministro de Israel Menachem Begin (1977), que acabou por proporcionar a ambos o Prêmio Nobel da Paz em 1978.
Curioso a outorga dessa distinção, para um personagem, Begin, cuja biografia registra sua intensa participação em movimentos sionistas, na juventude, e mais tarde no Irgun (também conhecido como Etzel), que em 1947, foi responsabilizado pelo atentado ao Hotel King David, em Jerusalém, na altura central administrativa e militar do Mandato Britânico da Palestina, provocando a morte de 91 pessoas, quase todas ingleses.
Em 1948, com sua participação (Organização Militar Nacional da Terra de Israel), foram denunciados os métodos terroristas, de inspiração nazi e fascista do Irgun, bastando ver a carta aberta publicada pelo jornal The New York Times no dia 4 de dezembro e assinada por diversos intelectuais judeus, entre os quais Albert Einstein e Hannah Arendt.
O quadro de referência mais recente que caracteriza a realidade da questão palestina está nos Acordos de Oslo, uma série de protocolos de entendimento consumados na cidade de Oslo, na Noruega, entre o governo de Israel e o Presidente da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat, mediados pelo presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton (1993). Os acordos representavam esforços para a realização da paz entre os dois povos, previam o término dos conflitos, a abertura de negociações sobre os territórios ocupados, a retirada de Israel do sul do Líbano e a questão do status de Jerusalém, mas também, a retirada das forças armadas israelenses da Faixa de Gaza e Cisjordânia, assim como o direito dos palestinos ao auto-governo nas zonas governadas pela Autoridade Palestina. Complementado por Oslo2 (1995), este assinado ao final por Yitzhak Rabin de Israel e pelo presidente Yasser Arafat (OLP), esses esforço granjearam para Rabin, Shimon Peres (relações exteriores de Israel) e Arafat, o Prêmio Nobel da Paz de 1994, “por seus esforços para criar a paz no Oriente Médio”.
Todavia, na realidade, a concretização desses esforços tem sido perpassada por injunções também econômicas, políticas e estratégicas com impacto regional e global, afetando criticamente o cotidiano de incidências no contexto de um conflito que não foi resolvido pelos Acordos.
Na Faixa de Gaza, por exemplo, um território de 41 km de comprimento e 10 km de largura entre Israel, Egito e o Mar Mediterrâneo, vivem cerca de 2,3 milhões de pessoas, sob o controle do grupo Hamas (direção inclusive eleita). Entretanto, apesar dos Acordos, Israel controla o espaço aéreo sobre Gazae restringe o trânsito de pessoas e mercadorias que entram e saem dessas fronteiras, num processo repressivo que tem apoio tático e político dos Estados Unidos.
De tal modo se expressa esse apoio, que mesmo a ONU em 2017, tendo lançado relatório que caracteriza a ação de Israel como prática de apartheid contra a Palestina, a Organização foi compelida a excluir o documento da pauta por pressão dos Estados Unidos, cujo poder também se expressa em veto como agora em outubro, na sequência do bombardeio, em posicionamento isolado contra a proposta brasileira (no exercício da presidência em rodízio do Brasil no Conselho de Segurança da ONU).
Dessas questões tratamos nos dois programas. Não só a posição brasileira forte na chamada à mediação pelo direito internacional, como pela possibilidade mediadora de um conjunto de países, com assento na Assembleia-Geral, mas que não têm seus interesses estratégicos envolvidos na região e no conflito, ou em sua ideologia.
Na minha intervenção recordei minha participação, juntamente com Cristovam Buarque, os dois únicos sul-americanos convidados e presentes no Colóquio Internacional de Argel – Encontro de Personalidades Independentes sobre o tema “Crise du Golfe: la Derive duDroit”, instalado exatamente em 28 de fevereiro de 1991, dia do cessar-fogo na chamada primeira guerra do golfo.
Havia personalidades fortes, fora as representações do Maghreb Árabe: Roger Garaudy, Ramsey Clark (ex Secretário de Justiça dos Estados Unidos), Bernard Langlois, Edmond Jouve, René Dumont, Monique Weyl, pe. Jean Cardonnel, Regis Debret. Cristovam apresentou uma comunicação contundente: Le Golf est Partout. De minha parte, ofereci um texto, em diálogo com o enunciado da convocação, baseada na premissa de que a crise coloca o Direito à deriva, tendo perdido o seu rumo no trânsito ideológico entre a “historicidade constitutiva dos princípios que consignam a sua força e força mesma, representada como Direito porque formalizada como norma de Direito Internacional”.
Já então, a inquietação com o emprego hegemônico de razões de fato e de direito, para que, em qualquer caso, principalmente quando há nítida disparidade entre forças, inclusive militares, que se deixem arrastar por um pretenso “direito de violência ilimitada”, cuja resultante “sugere a cessação da beligerância pelo aniquilamento inexorável de toda forma de vida”. Minhas razões completas estão no texto A Crise do Golfo: a Deriva do Direito, in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possibilidades Teóricas. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 2022, p. 133-144).
Por isso a posição firme da diplomacia brasileira (sem arroubos de posicionamento), tal como balizou o tema o Chanceler Mauro Vieira e que, mesmo sem lograr a aprovação de uma resolução, pautou a questão ética da controvérsia: “acho que uma nova resolução tem que pedir tudo, tem que pedir assistência humanitária, tem que pedir cessação de hostilidades, tem que pedir a cessação da violência, tem que pedir a libertação de reféns, tem que pedir a entrada de assistência humanitária, de produtos básicos, tem que permitir a saída de nacionais de terceiros estados, como são os brasileiros”.
Da formulação à ação. Imediatamente a montagem de uma operação sem precedentes de repatriamento dos brasileiros da região, com a mobilização de todos os recursos necessários, materiais e logísticos, como um imperativo de cidadania e de humanidade. Agora, quando regressam os derradeiros brasileiros procedentes de Gaza, esse princípio de governança se realiza: a vida e a humanidade em primeiro lugar.
Curioso que alguns amigos (muito poucos, diga-se) interpretaram minha posição como antissemita. Não creio que ser crítico e verídico possa se converter numa atitude anti-povo, racista, ou intolerante. Como não foram as críticas de Einstein e Hannah Arendt, e de muitos judeus hoje mundo afora.
No debate, ao limite, condenei o terrorismo de qualquer matiz, de qualquer origem. Sei que o terrorismo até pode em certas circunstâncias se erigir em forma política de ação. Os burgueses revolucionários de 1789, declararam seus atos numa cultura de direitos humanos e mesmo assim chamaram seu regime de salvação pública e o nominaram de Terror. Mas, para mim, com Roberto Lyra Filho (Desordem e Processo. Estudos em Homenagem a Roberto Lyra Filho, Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1986), “o terrorismo não destrói a sociedade injusta, mas as pessoas inocentes ou culpadas que nela se encontram e às quais deste modo é negado o direito fundamental”.
O que urge é “restaurar a humanidade incondicional em Gaza”. Essa é afirmação de um médico sem fronteiras (https://www.msf.org/unconditional-humanity-needs-be-restored-gaza). O que assistimos aqui, diz ele, em matéria que me enviou o querido amigo Alessandro Candeas, o incansável e presente diplomata brasileiro, embaixador do Brasil na Palestina: é um “bombardeamento indiscriminado [que] tem de acabar. O nível flagrante de punição coletiva que está atualmente a ser aplicado ao povo de Gaza tem de acabar”.
Me recuso a aceitar que fracassamos como humanidade.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
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