Vladimir Zelensky cancelou uma reunião que planejava realizar em Nova York com líderes da América Latina e do Caribe, paralelamente à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), na próxima terça-feira (24). O motivo: o baixo número de participações, de acordo com a imprensa.
O convite, enviado em agosto, recebeu poucas confirmações de presença, segundo matéria publicada ontem (17) pela Folha de S.Paulo.
Na cúpula organizada pela Suíça em junho para abordar o tema, sem a presença da Rússia, 11 das 33 nações da região participaram, e a maioria não enviou os chefes de Estado, incluindo o Brasil.
Ao mesmo tempo, os governos brasileiro e chinês estão organizando uma reunião em paralelo à assembleia da ONU para divulgar uma proposta conjunta para a paz na Ucrânia. Zelensky rejeitou a iniciativa sino-brasileira e a chamou de “destrutiva”. O plano foi assinado em maio por Celso Amorim, assessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva para assuntos internacionais, e pelo ministro das Relações Exteriores da China, Wang Yi, em Pequim.
De acordo com os analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a falta de apoio a Kiev por parte dos países latino-americanos e caribenhos é apenas a ponta do iceberg.
Para Isabela Gama, especialista em segurança e teoria das relações internacionais e BRICS da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), o conflito em si já está bastante esvaziado, com menos relevância no cenário internacional e cobertura midiática nas últimas semanas.
Gama, que também é professora assistente de relações internacionais na Abu Dhabi University, defendeu que a Ucrânia vem perdendo apoio de vários lados, mas sobretudo do Sul Global — incluindo o Brasil —, que desde o início do conflito evitou lhe demonstrar apoio.
Segundo ela, embora o governo Lula tente se mostrar neutro em relação ao conflito, as críticas do presidente estão cada vez mais direcionadas ao regime ucraniano.
A analista disse que a perda crescente de apoio tem a ver com o fato de Zelensky estar se comportando como um adolescente mimado que “a qualquer custo, às custas da própria população, está tentando se engajar em uma guerra que ou não tem fim ou vai solapar os civis da Ucrânia”, afirmou ela.
“Afinal, a Rússia já enviou algumas propostas para a Ucrânia, de tentar conversar e tentar pacificar esse conflito. Enquanto isso, a Ucrânia tenta sempre escalar. […] neste exato momento do conflito, é mais fácil perceber que Zelensky está se utilizando dessa narrativa de vitimização para angariar suporte e demonstrar um poder pessoal, o que não traz nenhum benefício para nenhum dos lados”, opinou ela.
Especialista em política externa russa e Forças Armadas russas e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas, Getúlio Alves de Almeida Neto frisou que os recentes eventos indicam que os países da América Latina e do Sul Global têm pouco a ganhar tomando uma posição de apoio irrestrito a qualquer uma das partes envolvidas no conflito.
Maria Eduarda Carvalho de Araujo, integrante do Centro de Investigação em Rússia, Eurásia e Espaço Pós-Soviético (CIRE) e pesquisadora no Observatório de Conflitos do Grupo de Estudos de Defesa e Segurança Internacional (Gedes), também defendeu que os países latino-americanos têm optado pela diplomacia e neutralidade em relação ao conflito.
Também citou a complexidade dessas influências em termos econômicos e políticos, com uma prevalência de iniciativas e atividades por parte da China e da Rússia, seguidas pelo Ocidente.
“A consequência disso é que grande parte das nações do Sul Global evita comprometer-se abertamente em um alinhamento com um dos lados.”
Entretanto, frisou ela, o Sul Global, que abrange América Latina, Ásia e África, tem visto na Rússia um ator mais engajado politicamente, “reconhecendo a importância econômica dessas regiões”.
“A Rússia tem dado destaque ao papel do BRICS e à necessidade de aprofundar as relações com o Sul Global, tanto no contexto do BRICS quanto em outros fóruns multilaterais, como o G20 (esforços que não são novos, mas que vêm ganhando maior enfoque). A China, por sua vez, exerce forte influência comercial, sendo o principal parceiro de vários países do Sul Global”, acrescentou Carvalho de Araujo.
Já a especialista em segurança da PUC-Rio pontuou que diferentes ideais têm pesado para o Sul Global em confronto com as narrativas do Ocidente, não apenas da Rússia e da China, como de outras nações.
“[…] Se tratarmos do Sul Global, que também está tentando surgir enquanto ator relevante no cenário internacional, acredito que seja a sobreposição de múltiplos atores, não apenas da Rússia e da China, mas de outros Estados que compõem o BRICS.”
A opinião de Almeida Neto é parecida, ao afirmar que o cenário internacional atual é marcado pela influência de vários polos, tornando o cálculo dos atores estatais muito mais complexo na tomada de decisão e dando maior espaço de manobra, já que agora não dependem exclusivamente dos países do chamado Ocidente.
“Ao mesmo tempo, temos a resistência dos tradicionais polos de poder e diversos conflitos na atualidade que colocam em lados opostos os interesses das potências, tornando as relações entre os países mais delicadas e frágeis e contribuindo para menos propostas multilaterais, em favor de acordos bilaterais ou, inclusive, ações unilaterais”, disse Almeida Neto.
Por outro lado, salientou ele, o cenário torna-se propício para a criação de novos mecanismos de concerto internacional dirigidos aos problemas contemporâneos que não podem ser mais administrados com eficácia por antigos arranjos.
A especialista em relações internacionais declarou que o envolvimento dos países do BRICS, com o papel ativo do Brasil e da China na elaboração da proposta conjunta de paz para a Ucrânia indica um impulso ao multilateralismo e a defesa de que os países não se isolem em grupos econômicos ou políticos.
“Isso fica evidente na preparação da proposta conjunta de paz para a Ucrânia elaborada pelo Brasil e pela China, sugerindo que os países não ocidentais podem preferir soluções diplomáticas e pacíficas, fora do escopo da OTAN, que é essencialmente uma aliança militar”, disse ela. “Esse esforço está alinhado com os objetivos mais amplos do BRICS de promover uma ordem mundial multipolar, o que provavelmente terá repercussão nas discussões durante a Assembleia Geral da ONU”, apostou Carvalho de Araujo.
A OTAN no conflito
A previsão de uma baixa participação na reunião de Zelensky também pode ser interpretada como um sinal das dificuldades enfrentadas pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em disseminar sua narrativa entre os países não ocidentais, ponderou Carvalho de Araujo.
“A narrativa da OTAN está cada vez mais centrada em uma lógica de soma zero, na defesa de interesses excludentes em relação à Rússia, o que torna a busca por uma solução negociada para o fim do conflito mais complexa e difícil de alcançar”, comentou.
Almeida Neto argumentou que nenhuma proposta de paz por parte dos países da OTAN terá êxito, uma vez que a organização tem atuado cada vez mais dentro do contexto da guerra Rússia-Ucrânia, mesmo que indiretamente.
“Ao longo do tempo, portanto, é possível que propostas originadas por outros países, como os da América Latina e África, tenham um peso maior dentro da comunidade internacional e o discurso da OTAN se torne enfraquecido, em razão de ser parte diretamente interessada no conflito”, ponderou.
De acordo com Gama, a OTAN vem tentando há muitos anos encontrar agendas nas quais se veja como relevante, para que não acabe.
“Cada vez mais a OTAN faz um movimento contrário de enfraquecer sua dinâmica, a sua posição no cenário internacional, porque não é mais, na minha perspectiva, uma aliança de defesa: tornou-se um risco muito grande e uma instigadora de conflitos e de discórdias internacionais.”