Sempre tive com as loucas e os loucos [de pedra] uma relação amistosa e respeitosa, em especial com @s pertencentes à base da pirâmide social, massacrad@s pelo capitalismo.
Nos anos 70s tive a honra de me tornar amigo de Carmelita, apelidada de Cebola. Morava na entrada da Sambaíba.
Recordo que numa manhã eu estava trabalhando no banco, quando ela entrou desesperada gritando pra mim “Tem um cara querendo tomar minha casa!”. Falei com ela pra ir correndo ao cartório requerer o título dominial, as despesas eu pagaria.
Uma hora depois chegou dizendo que já estavam preparando o documento que lhe garantiria a posse legal da casa.
Como ela era muito escandalosa, as burocratas do cartório não vacilaram em atender a pirada, sob risco dela literalmente virar as mesas da repartição e fazer aquele escarcéu. Ao meu trabalho no outro dia exibindo o título.
Cebola tinha um hábito, como dizem os hipócritas falsos moralistas, “atentatório à moral e aos bons costumes”: em pleno dia, sol a pino, nas praças e ruas centrais de Santa Maria ela levantava a saia –sem nada por baixo- até o umbigo e exibia, rindo escancaradamente, as famosas partes, aquela “convergência entre o umbigo e os joelhos” segundo a letra de Triângulo das bermudas, de José Carlos Capinan musicada por Carlos Pita.. Ai daquele que tentasse se aproximar… Levava um tremendo bofete.
Charles Bicalho, “Charrinha”, é outro pinel de respeito. Antes de despirocar ele frequentou assiduamente a Biblioteca Campesina. De Manágua, Nicarágua, em 1980 enviei cartão postal pro grande leitor, diz que guarda até hoje.
Ataidinho, este de família nobre, os Athaydes, foi também um grande amigo meu. Os idiotas creem no mito de que ele endoidou por ser muito inteligente. A elite fala e a turba ignara acredita e replica. Neste caso, é questão de genética. O nível cultural desse cidadão, hoje em dia um grande andarilho urbano e semi-rural, é altíssimo. Tinha uma biblioteca particular com grandes obras-primas da literatura universal.
Em Salvador tive a satisfação de estabelecer uma amizade muito frutífera culturalmente. Conheci, através do cantautor Fábio Paes, o grande poeta Carlos Anísio Melhor. Ele já tinha passado por umas fases brabas, tendo marcado presenças por uns tempos nos Sanatórios Bahia e Ana Nery, além do Hospital Juliano Moreira, todos nos anos 60s.
A cada vez que eu ia à terra de Caymmi fazia questão de ir na Fundação Cultural da Bahia bater aquele papo com ele e Bule-Bule. Frequentamos muito o Porto do Moreira, tradicional restaurante soteropolitano.
Nos tempos atuais, a Biblioteca Campesina tem dois frequentadores que, quando não estão se distraindo no CAPS, vêm, digamos, bater papo comigo: Maurício e Naldo, devem ter entre 25 e 30 anos.
Claro que praticamente só ouço os, digamos, informes.
O primeiro chegou ontem dizendo que “a virada do ano foi boa”; “escutei no rádio que Rui Crosta [sic] tomou posse”; “estudei na escola José Barcador” [Desembargador J. Laranjeira]. Sempre me traz presentes: um dia é miojo, no outro balinhas, refrigerante, barra de sabão, biscoitos etc. e às vezes até dinheiro. Recentemente me deu 2 reais. Leva livros, CDs, DVDs…
O outro, Naldo, é obcecado por Atlas e livros de geografia. Já me presenteou com lanterna, relógio de pulso e um dia tirou 2 reais do bolso, “procê comprar cigarros”.
Nesta semana veio na Campesina, ouvi ele balbuciar “Colômbia, Bogotá”. Foi a deixa.
Decidi testar o conhecimento do geógrafo.
Falei Argentina, ele, na bucha, “Buenos Aires”, Chile, “Santiago”, Equador, “Quito”… até esgotar a América do Sul. Fomos pra América Central: Honduras, “Tegucigalpa”, Costa Rica, “São José”, Nicarágua, “Manágua”.
América do Norte, Canadá, “Ottawa”.
Impressionante, o cara respondeu a todas sem vacilar.
Tenho certeza absoluta de que muita gente por aí que tem nível médio e até curso superior não saberia responder como o referido leitor, tudo correto.
Me pediu um dicionário, passei. Meia hora depois ele volta, “esse não, é alemão”. E era mesmo…
Levou uns livros pra casa, devolveu no outro dia alegando que eram em espanhol. Correto.
Há uma pirada chamada Maria que vem frequentemente na Campesina com a missão de me “evangelizar”. Ela tá nesse desafio há quase uma década e até hoje não surtiu efeito, continuo des-evangelizado e assim permanecerei até quando partir pra outra.
Finalizando, quantas pessoas desse tipo estão abandonadas à própria sorte [ou ao azar] por este país e poderiam estar colocando seus conhecimentos a serviço de suas comunidades?
Não é à toa que o neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, reconhecido como um dos maiores do mundo, afirmou que no Brasil muita gente pobre poderia se transformar em grandes cientistas.
Mas a ausência do Estado faz com que essas marginalizadas pessoas –cucas fu[n]didas- se a[pro]fundem no poço do desespero.
Biblioteca Campesina, 19 março 2025
Que loucura, de Sérgio Sampaio
(homenagem a Torquato Neto)

(*) Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.
*As opiniões dos autores de artigos não refletem, necessariamente, o pensamento do Jornal Brasil Popular, sendo de total responsabilidade do próprio autor as informações, os juízos de valor e os conceitos descritos no texto.