Segundo Xisto Vieira Filho, a energia termelétrica, juntamente com a energia hidrelétrica com reservatório, são as únicas duas fontes que dão, efetivamente, confiabilidade ao sistema interligado
Conversamos sobre a matriz elétrica brasileira e a energia termelétrica com Xisto Vieira Filho, presidente da Abraget (Associação Brasileira de Geradoras Termelétricas).
Qual a sua avaliação sobre a matriz elétrica brasileira?
A situação atual da matriz elétrica brasileira ainda não está adequada. A matriz do país deveria levar em conta três fatores, extremamente importantes para o consumidor, que chamamos de trilema: ela deve fornecer os melhores preços, com o menor impacto ambiental e com a maior confiabilidade possível.
Dentro desse contexto, nós estamos bem apenas na parte ambiental, pois 87% da nossa matriz é renovável, sendo que, em situações operativas, ela pode chegar e superar 95%. Isso já aconteceu quando havia água demais. A nível mundial, a nossa matriz somente será atingida em 2050, e mesmo assim poucos países chegarão a 90% de geração renovável, o que faz com que o Brasil esteja muito à frente. Essa não é a preocupação.
Enquanto a parte de meio ambiente está equilibrada, a confiabilidade e a parte de preços não estão. Com relação à confiabilidade, nós operamos em risco o tempo todo. Com relação aos preços, nós somos dependentes da água, do vento e do Sol. Quando falta Sol, alguém tem que entrar no seu lugar. Quando falta vento, e falta vento em proporções de intermitência elevadas, alguém tem que entrar no seu lugar. E quando falta água, alguém tem que entrar no lugar da água.
Essas intermitências, sendo que as intermitências das energias solar e eólica são diárias, e as das hidrelétricas, sazonais, tornam o sistema mais caro, já que alguém mais caro tem que substituir os combustíveis da natureza, o que faz com que o preço não esteja em uma questão otimizada.
Qual a importância da energia termelétrica dentro dessa matriz?
A energia termelétrica, juntamente com a energia hidrelétrica com reservatório, são as únicas duas fontes que dão, efetivamente, confiabilidade ao sistema interligado, ao sistema de potência. Isso porque elas são capazes de atender a curva de carga 24 horas por dia, sete dias por semana, e não são intermitentes, já que uma hidrelétrica com reservatório deve suportar isso, e as termelétricas têm combustíveis que não dependem da natureza.
Com essas fontes, os problemas de estabilidade do sistema são atendidos por máquinas síncronas ligadas, diretamente, ao sistema. No caso das fontes IBR (Inverter-Based Resources), como solar, eólica e baterias, elas são ligadas ao sistema através de um inversor de potência, que é muito mais sensível a desligamentos do que uma máquina síncrona.
Além disso, esses inversores não têm a capacidade de fornecimento das máquinas síncronas e controles robustos de tensão e de frequência, que são as duas unidades básicas do sistema.
Basicamente, a função da termelétrica é dar confiabilidade energética e elétrica. No caso da confiabilidade energética, por exemplo, a térmica vai gerar por um longo tempo quando falta água e é preciso encher o reservatório. No caso da confiabilidade elétrica, você tem necessidade de que o sistema não fique instável, como, por exemplo, a perda de uma linha de transmissão que pode derrubá-lo. São em casos como esses que precisamos das máquinas síncronas.
Na avaliação da Abraget, há uma discussão racional, coerente e técnica relacionada ao setor elétrico?
Não, não há, e a explicação para isso é extremamente simples. Com a criação do mercado livre, houve um fluxo de demanda muito grande e acelerado do mercado regulado para o mercado livre. Antes disso, os leilões de energia eram feitos com base na previsão de energia que as distribuidoras tinham. O problema é que, hoje, nenhuma distribuidora prevê demanda, pois ela pode prever e a demanda diminuir, já que o consumidor pode fluir para o mercado livre.
Como ninguém mais faz previsão de demanda, o leilão de energia diminuiu de importância. A questão é que os grandes concorrentes do leilão de energia eram as hidrelétricas, eólicas e solares. Como os leilões de energia acabaram, todo mundo passou a querer um contrato de longo prazo para chamar de seu. Cabe destacar que, por mais que as eólicas e as solares sejam as que mais vendem no mercado livre, elas também querem contratos de longo prazo, que estão nos leilões de capacidade. O problema é que como todo mundo saiu correndo para tentar entrar no leilão de capacidade, e não se tem mais o leilão de energia, agora se quer acabar com o leilão de capacidade, o que é totalmente sem propósito.
O que está acontecendo no setor é uma questão de disputa de mercado de uma forma injusta para o sistema, pois é injusto querer forçar a barra para botar usinas não confiáveis em um leilão de confiabilidade. Pelo lado dessas usinas, como elas estão disputando mercado, se derem todo o mercado para elas e o sistema for derrubado, o problema não é delas, e sim do operador.
Essas usinas estão no seu direito, mas isso está causando uma verdadeira bagunça energética na matriz. A solução para isso é muito simples. É só acertar os leilões. É preciso fazer leilões estruturantes só para as hidrelétricas, principalmente as com reservatório. É preciso também colocar nesses leilões as usinas nucleares. Para as usinas eólicas e solares, seria preciso fazer um leilão específico para melhorar, vamos dizer assim, a capacidade de auxílio ao clima, que não é tanto assim quanto se diz. E, finalmente, mas não menos importante, fazer um leilão de baterias. Isso seria para a finalidade das baterias, pois a confiabilidade com baterias é apenas para sistemas muito pequenos, os chamados minissistemas.
É preciso fazer os leilões certos, pois há espaço para todo mundo na matriz, mas com cada um dentro dos seus atributos. O que não se pode fazer é botar uma usina intermitente para disputar um leilão de confiabilidade. Outro ponto é que não se pode botar uma termelétrica para disputar um leilão de energia, já que a sua energia é eventual. Uma termelétrica só é de base quando se tem um problema energético, pois elas só entram em situações de emergência ou para evitar emergências.
Se o sistema de leilões não for mudado, será impossível consertar a matriz.
Quais são as principais vantagens e desvantagens da energia termelétrica?
A principal vantagem é a confiabilidade. Como disse, a térmica é uma máquina síncrona à disposição do sistema. Em termos de confiabilidade, isso é imbatível. Até hoje, inclusive a nível mundial, não se conseguiu um substituto para uma máquina síncrona em termos de confiabilidade. Há uma tentativa com baterias tipo GFM, a nível experimental, em países como Estados Unidos, China, Inglaterra e Austrália. Esse experimento vai gerar bons frutos, mas para a confiabilidade de um sistema de potência, ele não vai resolver. Seria mais fácil esverdear uma máquina síncrona do que procurar um inversor de eletrônica de potência que a simulasse.
A desvantagem é a emissão de CO2. Contudo, nós temos associados que estão prontos para colocar novas térmicas com CCUS (Carbon Capture, Utilisation and Storage), ou seja, com captura de carbono. Com isso, nós vamos ter uma térmica 70%, 80% verde, o que resolve a questão. É só fazer um leilão de energia nova que colocamos novas térmicas com CCUS. Além disso, no futuro nós teremos as térmicas com hidrogênio renovável.
As usinas nucleares não poderiam ser um caminho? Por exemplo, enquanto a Alemanha desativou todas as suas usinas nucleares, para passar a importar energia nuclear, a França não toca nesse assunto e ainda pretende ampliar o seu parque de usinas nucleares para garantir a independência e segurança energética do país.
As usinas de maior requerimento e impacto na transição energética são as térmicas a gás e as nucleares. No Brasil, as usinas de Angra I e Angra II têm uma importância impressionante, pois elas são de base, ou seja, estão gerando o tempo todo. Sem essas duas usinas, nós estaríamos em um período extremamente crítico.
O problema das usinas nucleares é que elas têm que gerar na base, pois sempre geram no máximo. Agora estão sendo lançadas pequenas usinas nucleares que são mais flexíveis e que podem ser despachadas com maior facilidade. Junto com as térmicas existentes, essas usinas seriam extremamente importantes para a formação de um excepcional parque em termos de confiabilidade.
Considerando a conversa que tivemos, você gostaria de acrescentar algum ponto à sua entrevista?
Atualmente, um problema que está incomodando é o curtailment, ou seja, o corte de energia eólica e solar do Nordeste, onde estão a maioria das usinas, por questões de confiabilidade. Por mais que haja um limite de transmissão, que não pode ser ultrapassado, esse problema não está na transmissão, e sim nas emissoras localizadas no Nordeste que possuem uma possibilidade de instabilidade de tensão, como houve no dia 15 de agosto de 2023, quando tivemos um blackout. Isso está fazendo com que não se possa despachar todas as usinas eólicas e solares.
Nós já entregamos um relatório a ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) e a EPE (Empresa de Pesquisa Energética) mostrando que se as usinas térmicas localizadas no Nordeste, e que estavam desligadas, tivessem sido despachadas, como Pecem I, o curtailment teria sido reduzido de forma significativa, ou seja, teria sido possível transmitir muito mais energia das usinas eólicas e solares. Por exemplo, se Pecem I colocar 700 MW, aumenta-se a possibilidade das usinas renováveis do Nordeste transmitirem cerca de 3 mil MW.
Essa restrição está deixando o pessoal das eólicas e solares muito aborrecidos, e com razão, sendo que esse problema está se dando por falta de geração térmica. As térmicas estão disponíveis para ajudar nessas situações. É por isso que a matriz tem que ter todo mundo.