Todos os dias, um remédio de alta qualidade e custo irrisório é jogado no lixo nas maternidades: a camada mais interna da placenta que envolve o feto no útero – chamada de membrana amniótica – milagrosa no tratamento de queimaduras graves. O SUS poderia gastar muito menos com os curativos e as dores dos pacientes poderiam ser menores. Mas o processo de autorização de uso está parado, a espera de regulamentação. A necessidade, alertada pelos médicos, foi despertada na tragédia provocada pelo incêndio da Boate Kiss, em 2013
O pedido urgente que chegou ao Conselho Federal de Medicina para a regulamentação do uso da membrana amniótica como curativo no tratamento de pessoas queimadas demorou cerca de 10 anos para ser atendido. A aprovação pelo CFM foi um passo importante na tentativa de reduzir as dores dos pacientes e a inquietação dos médicos. Mas não mudou em nada a realidade. O processo está parado há três anos na Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec).
Então, a sociedade resolveu se mexer e foi criada uma frente nacional que se mobiliza, inclusive com pedido de audiência à ministra da Saúde, Nísia Trindade. “Solicitamos a atenção da ministra porque sabemos da sua sensibilidade e empenho no atendimento humanizado. Com isso, milhares de pessoas terão recuperação mais rápida e o procedimento será decisivo para salvar muitas vidas”, pontua o presidente da Fundação Ecarta, Marcos Fuhr, instituição que tomou a iniciativa, mantida pelo Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro/RS) e que há 12 anos promove a Cultura Doadora, campanha permanente para doações de órgãos e tecidos e para a qualificação da infraestrutura de atendimento à saúde no país.
Com tantos anos de luta, e uma rede consolidada de solidariedade, embora ainda pequena para o tamanho da demanda, a frente nacional criada em julho deste ano tem adesões de respeito. Entre os signatários estão a Central de Transplantes do Rio Grande do Sul, a Sociedade Brasileira de Queimaduras, os quatro bancos de tecidos do país, as duas Unidades de Queimados do RS (Hospital de Pronto Socorro e Hospital Conceição), Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Associação Riograndense de Imprensa (ARI), ViaVida, Central Única dos Trabalhadores (CUT/RS), Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro/RS).
Estoques de pele: zero.
Não faltam argumentos convincentes para a regulamentação do uso da membrana amniótica. O diretor do Banco de Tecidos da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, Eduardo Chem, recorre aos registros do último dia 8 de novembro para dar exemplo da necessidade. “Neste dia, o estoque de nosso banco de tecidos está zerado. Temos peles captadas em fase de processamento, entretanto há quatro ou cinco estados do Brasil com queimados graves aguardando para receber essas peles”. Além da instituição gaúcha existem apenas outros três bancos no Brasil (RS, SP e PR). Todos mantidos pelo SUS.
A dor de quem espera em uma cama de hospital se prolonga mais ainda com a demora necessária aos cuidados rigorosos antes que as peles captadas de pessoas mortas sejam liberadas para aplicação em pacientes. O laboratório de microbiologia do Banco de Tecidos da Santa Casa realiza as análises e depois o controle de qualidade passa também pelo Sistema Nacional de Transplantes e pela Vigilância Sanitária, para evitar a contaminação de doenças que possam ser transmitidas.
Útero limpo
“A membrana amniótica vem do útero materno, estéril (sem microrganismos), diferentemente da pele que sempre vem contaminada. A gestante já fez o pré-natal, portanto, previamente à coleta, sabemos se existe alguma doença infectocontagiosa”, compara o dr. Chem. Para piorar a situação, a Santa Casa de Misericórdia consegue mensalmente quatro a cinco doadores, pois as famílias dos falecidos temem mutilações. O preconceito complica tudo. O diretor do Banco de Tecidos explica que a pele é retirada de coxas, pernas e tronco posterior e que o local apenas fica um pouco mais claro, sem aparência de ferimento, e além disso essas partes do corpo nunca são expostas no velório.
O médico enfatiza que a abordagem às famílias é feita após o óbito por parada cardiorrespiratória ou morte encefálica. E como nos casos de doação de outros órgãos e tecidos, a abordagem é sempre feita por profissionais capacitados a perguntar sobre o interesse em doar.
Desperdício de dinheiro
A alternativa a esse tipo de doação geralmente é o uso de pele sintética. A comercialização é feita por cm², que custa R$ 50. Uma diferença brutal, comparada ao custo de captação da membrana amniótica, R$ 0,19. Em caso de transplante em um adulto podem ser usados 3 mil cm². A diferença do investimento pode ser de R$ 500 para a opção natural e poderá ficar entre R$ 150 mil e R$ 500 mil no caso da opção sintética.
A comparação neste momento é inevitável para o médico Eduardo Chem: “Somente a Santa Casa de Porto Alegre poderia fornecer em torno de 60 mil cm² de membrana amniótica para transplantes”. Com muitas vantagens. “É de fácil obtenção e alta disponibilidade. E o doador faz a doação no momento mais oportuno, de nascimento de uma criança. Um momento feliz”, ressalta ele.
Eduardo Chem explica que Banco de Tecidos tem como funções principais realizar captação, processamento, controle de qualidade, armazenamento e disponibilização de finas lâminas de pele humana com finalidade de transplante sempre por meio da Central Nacional de Transplantes do SUS. A pele funciona como curativo biológico temporário para cobertura de lesões cutâneas superficiais e profundas. Evita o agravamento das queimaduras, diminui a dor, reduz a perda de líquidos e evita infecções. Após duas a quatro semanas a pele é totalmente rejeitada, pois não são usados medicamentos imunossupressores (aqueles que evitam a rejeição em casos, por exemplo, de outros transplantes). A natureza faz cair a pele usada como curativo, para nascer outra naturalmente.
Bebês podem sofrer menos
Não é difícil se sensibilizar a favor desta causa. Basta ver algumas das aulas de Eduardo Chem disponíveis em vídeos na internet e ouvir as histórias que ele conta. Ele mostra o caso de uma criança de 1 ano de idade, em que a equipe médica optou por usar a pele do banco de tecidos antevendo que a retirada do tecido do corpinho do próprio bebê deixaria uma área muito dolorida a ser curada.
“Além de todo o sofrimento que a criança já havia passado com a queimadura, ainda teria uma ferida em seu corpo muito dolorida. Temos um colega que chama essa “zona doadora” de “zona doedora”, pois é bastante sofrida a consequência desta opção. O transplante (de pele de terceiro) pode ser feito em 20 minutos de procedimento e, em duas semanas, começa a desgrudar, com o nascimento da pele nova. Isso significa a redução do sofrimento da criança que de outra forma passaria por mais dor, com trocas frequentes de curativos”, relata Eduardo Chem.
Tragédia Kiss
O médico conta ainda que no grande incêndio ocorrido na boate Kiss em janeiro de 2013 o banco de peles gaúcho recebeu, além de pele, uma extensa quantidade de membrana amniótica de países vizinhos como Uruguai e Argentina. “Foram 242 mortos, 690 feridos com queimaduras e 90 com necessidade de UTI (Unidade de Tratamento Intensivo). Recebemos ligações de todo o mundo oferecendo ajuda de bancos de pele”.
Foi realizada, então, uma força-tarefa na Santa Casa de Porto Alegre, e o estoque era zero. “Apesar de não haver legislação no Brasil, naquele momento foi autorizado o uso da membrana amniótica para transplante em caráter excepcional pelo Sistema Nacional de Transplantes”, afirma. Porém, foram realizados apenas oito ou nove transplantes de pele, porque as queimaduras foram inalatórias (internas, por inalação de fumaça), restando uma quantidade de membrana amniótica e pele suficiente para o transplante em 34 pacientes.
“Desde o ocorrido, há anos, o banco reivindica aos órgãos competentes a regulamentação da membrana amniótica para os bancos de tecidos brasileiros. A doação de membrana amniótica é respaldada pela Lei dos Transplantes nº 9.434 de 1997 (regulamentada recentemente pelo decreto de nº 9.175/17). Nesta Lei, institui-se critérios para a retirada de órgãos e tecidos de doadores in vivo e post-mortem, desde que feita em respeito às normas legais vigentes, especialmente no que tange à necessidade do consentimento informado da mulher e à não cobrança pelo uso do material”, relata. Mas há muitas restrições de uso, também previstas em lei.
Resposta do Ministério da Saúde
O Jornal Brasil Popular procurou a Assessoria de Comunicação do Ministério da Saúde em busca de um profissional para comentar sobre o uso da membrana amniótica no tratamento de queimados. A resposta foi dada por email:
“Infelizmente não temos fonte disponível no momento. Segue o posicionamento do Ministério da Saúde em nota:
O SUS oferece assistência integral e gratuita aos pacientes que sofrem queimaduras, incluindo atendimento emergencial, tratamento hospitalar em centros especializados e reabilitação. Em casos graves, o acesso ocorre por meio das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e hospitais de emergência.
Até o momento, não há solicitação para avaliação da incorporação da membrana amniótica para o tratamento de queimaduras no SUS. Para que uma tecnologia em saúde seja incorporada, é necessário registro na Anvisa e avaliação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec).
A Comissão atua sempre que solicitada e assessora o Ministério da Saúde nas decisões sobre a incorporação ou exclusão de tecnologias, com base em evidências científicas, considerando aspectos como eficácia, efetividade e segurança.
Para mais informações, acesse: https://www.gov.br/conitec/pt-br.”