A provocação do título não é uma audácia, tampouco um desprezo pela relevância dos números. O título tem o objetivo de incitar um questionamento frente a efetividade do que se espera dele, em relação à continuidade do governo Bolsonaro.
Para fazer um exercício de compreensão do poder belicista do “somos 70%”, recuperemos alguns outros números. Comecemos por desmistificar o desdém que muitos demonstram ter em relação ao peso do percentual de 39,3% dos votos, pelo critério do eleitorado total, obtido por Bolsonaro no segundo turno das eleições de 2018. Se compararmos estes, com os votos recebidos por Lula no segundo turno em 2002 e 2006, veremos que a votação do Bolsonaro ficou, de fato, bem abaixo que as do Lula. Agora, se compararmos a votação de Bolsonaro com as votações alcançadas por Dilma em 2010 e 2014 de 41.1% e 38.2%, respectivamente, perceberemos uma similaridade destes percentuais, considerando vis a vis os mesmos critérios eleitorais, sendo a de Bolsonaro ligeiramente superior que a da Dilma em 2014.
Vejamos agora a evolução numérica do “somos 70%”. De acordo com a série histórica apresentada na pesquisa XP/Ipesp da última semana, já nos primeiros 5 meses do governo Bolsonaro, a linha de ruim e péssimo ficou maior que a linha do ótimo e bom. Enquanto a primeira subia de 20% para 35%, a segunda caía de 40% para 34%. Essa rapidíssima inversão de avaliação já nos primeiros meses pode revelar, dentre outros fatores, o reposicionamento dos eleitores que cumpriram a missão, votando ou anulando o voto para derrotar a esquerda, sem nenhum critério de responsabilidade cidadã, vínculo ou apreço ideológico por Bolsonaro. Com o tempo, o eleitor pendular foi descendo do muro e o governo, em suas entranhas, também foi revelando suas excêntricas e singulares idiossincrasias, o que gerou um percentual de reprovação crescente do governo em direção ao “somos 70%”. Todavia, a base bolsonarista desde então se estabilizou, oscilando sempre entre 34% de aprovação em maio de 2019 e 31% em abril de 2020. Essa “estabilidade” foi abalada nos últimos 35 dias. De acordo com os dados da pesquisa XP/Ipesp, a vida dos bolsonaristas ficou mais difícil. As mudanças de ministros; a saída do Moro; as asneiras do 01, do 02 e do 03; o coronacrise; a trombada com o STF e, sobretudo, o desmantelamento de parte da indústria das fake news criaram fissuras na imagem do governo. Ainda assim, na última semana de maio a linha de aprovação oscilou minimamente para cima e a de desaprovação minimamente para baixo.
Esse percentual de resistência bolsonarista que orbita na casa dos 30%, agregada ao apoio político do centrão, à caneta do presidente e às dificuldades de manifestações populares devido ao isolamento social, entre outros fatores, dá suporte à sobrevivência do governo. Esses 30% parecem ter um escudo e são, até agora, invioláveis em suas posições de apoio ao Bolsonaro.
Quando utilizamos o índice de aprovação dos últimos governos, percebemos, através de uma pesquisa do Datafolha de março de 2016, que 68% dos entrevistados eram favoráveis ao impeachment da Dilma, enquanto a pesquisa Datafolha deste domingo de 31/05 mostrou que somente 46% dos entrevistados são a favor do afastamento de Bolsonaro, ou seja, mesmo dentre os “somos70%” que desaprovam o governo, aproximadamente 35% destes não estão inclinados ao Impeachment. O “somos 70%” ainda tem muito que caminhar em suas estratégias de luta e intervenção, uma vez que não podemos nos esquecer que Temer se manteve no poder com índices de aprovação muito inferiores aos atuais de Bolsonaro, ainda que o contexto tenha sido outro.
Na política partidária formal, parlamentar e setorial as oposições estão demonstrando cabalmente precariedade e inabilidade nas mobilizações contra o bolsonarismo. Parece que o índice de desaprovação do governo cresceu por inércia e virou o “somos 70%”. Essa sensação ocorre devido ao que assistimos diariamente, muito mais em decorrência das patuscadas e confusões do próprio governo que em razão de ações organizadas e coordenadas pela oposição. Este governo faz oposição à ele mesmo.
Para voltarmos a refletir sobre o título, em uma situação de confronto, ter 70% de soldados bem armados para combater um outro exército com apenas 30% de despreparados, não garante a vitória do mais forte. A história apresenta inúmeros fatos de ricos e gigantescos exércitos derrotados por outros menores e, às vezes, até mesmo modestos, como a humilhação do então soberano Napoleão Bonaparte na “Campanha da Rússia” ou também as sucessivas derrotas do então poderoso Exército Brasileiro durante a resistência de Canudos, protagonizadas por Antônio Conselheiro e seus fanáticos seguidores. Estes resultados demostraram que a competência de líderes, a capacidade de resistência e estratégias bem montadas possibilitam a vitória contra a supremacia numérica e bélica de seus adversários.
Por aqui, para além da prudência com os números, é preciso ter respostas para questões como: Onde estão os líderes da resistência? Nas lives? Nos discursos do parlamento? E as estratégias de luta, quais são? São as redes sociais? Qual é a agenda unificadora da luta? Creio que a resistência ao bolsonarismo passará pelas mulheres, pelos jovens e pela Cultura, mas qual a potência destes grupos e deste movimento? A torcida do Corinthians vai derrotar o neofascismo?
É certo que o tumulto com o STF criou uma situação de imprevisibilidade bem alta, mas, de qualquer forma, a desordem e falta de liderança nas oposições dificulta muito as ações políticas e partidárias para o impedimento deste governo. Neste momento, está faltando maturidade, liderança e mobilização das oposições e instituições que parecem estar congestionadas.
O que resta então? Para além da imprevisibilidade deste imbróglio com o STF e dos tentáculos com os elementos 01, 02 e 03?
Pois bem, o que a política não está conseguindo fazer, aparentemente a economia fará. De acordo com os dados desta pesquisa XP/Ipesp, a percepção das pessoas entrevistadas em relação ao desempenho da economia é trágica para o governo. Em 4 ou 5 meses a avaliação positiva da economia brasileira despencou de 47% de aprovação para somente 27% neste final de maio. A descida foi brusca, direta e sem oscilações. Isso sem considerar os efeitos referentes à queda de 1,5% do PIB no primeiro trimestre deste ano, que ainda não foram plenamente percebidos. Para piorar, o início da queda do PIB ocorreu ainda antes do efeito coronacrise. Estes dados são desastrosos, sobretudo para um governo que resiste de todas as formas flexibilizar o aumento de crédito para pessoas e micro, pequenas e médias empresas. Baseado nos últimos dados preliminares projeta-se, para os próximos meses, a maior crise econômica e social da história do país. Muitos setores da economia estão reduzindo suas atividades por dois motivos: a falta de demanda e a falta de credibilidade no governo e consequentes incertezas com o futuro. O governo já podia ter se movimentado num sentido propositivo, liberalizante e indutor de investimentos e gerador de demanda. Todavia, continua apoiado na “bengala” do mercado, transferindo recursos para o setor especulativo, sem nenhuma resposta positiva de reversão ou ao menos amenização dos impactos que estão por vir. Neste momento, o investimento público em infraestrutura, em proteção social e abertura de linhas de crédito para pequenas empresas e famílias, com carência de 12/18 meses, são essenciais. O problema é que todas estas medidas são verdadeiros fantasmas para o atual ministro da economia.
Portanto, o desequilíbrio econômico, com o inevitável crescimento dos processos de falência, aumento do já gigantesco contingente de desempregados e, agora, agravado com o “desemprego” dentre aqueles que já estavam na condição de subemprego, provocará um esgarçamento social e um aumento da violência.
Para quem nasceu no universo da fome das grandes metrópoles, na indigência, comendo gabiru e andando léguas para beber água, a anestesia social é explicável, contudo, milhões de famílias brasileiras saíram da pobreza e da miséria entre os anos 2000-2015. Independentemente de posições políticas, elas nasceram em outra realidade ou experimentaram um lado menos amargo da vida. Tiveram conquistas pessoais, construíram coisas e produziram sonhos. Este contingente não terá a passividade do primeiro extrato social, nascido no universo da indigência. O desamparo para quem tinha amparo, a violência social para quem tinha sonhos e a fome para quem nunca sentiu fome são perigosos artefatos de explosão social que provocarão desordem e inevitáveis conflitos.
Quando isso acontecer, não “seremos 70%”. Quem sabe “seremos 10, 15 ou 20%” de mulheres e de jovens lutando nas ruas e não só nas mídias eletrônicas. Seremos militantes de movimentos sociais, seremos os torcedores do Corinthians, do Santa Cruz, do Internacional e de outros times, seremos guerreiros enfrentando os neofascistas, enfrentando a repressão estatal e lutando a favor da democracia perdida.
Marco Aurélio Loureiro é economista e atuou no Ministério do Desenvolvimento Social durante os dois mandatos de Lula