Durante minha infância, até os 7 anos de idade –quando o meu pai João Lisboa nos deixou fisicamente-, morei numa casa na Rua da Lagoa, hoje dos Doidos.
Eram tempos de pião, bola de meia bola de gude, fogueiras de São João repletas de bananas, laranjas, rapadura, cortezano, ferrro-quina e cachaça pros paus-d’água, tapioca…, nossa rua era só areão.
Para felicidade de toda a criançada daquela rua e das adjacentes das Flores e da Caatinga, ali morava, a poucos metros da casa onde eu vivia, o mestre carranqueiro Francisco Guarany.
O motivo da nossa felicidade era que, nas tardes de domingo, a gente ia pra casa de Guarany, tod@slimpinh@s e perfumad@s, sentados numas cadeiras de couro na sala principal aguardando o grande momento.
Era quando o anfitrião ligava um gramofone [toca-discos], dava corda no aparelho e começava a sessão musical.
Ele tinha uns discos de carnaúba, de 78rpm [rotações por minuto], e a meninada passava a tarde toda ouvindo Francisco Alves, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Aracy de Almeida, Nora Ney, Edith Veiga, Ângela Maria, dentre outr@s.
Para completar os prazerosos momentos, dona Benvinda, a esposa de Guarany, preparava uns refrescos de tamarindo adoçados com rapadura que vinham acompanhados de bolinhos de milho feitos no canto da caçarola. E a cambada degustava como se fora um grande banquete.
Ao cair da tarde voltávamos pra casa contentes por termos vivenciado esses simples e ao mesmo tempo grandes prazeres.
Até então não tínhamos a mínima ideia da genialidade daquele homem, nem de longe poderíamos imaginar que as carrancas que ele produziu iriam percorrer não só o Brasil como também vários países do exterior, expostas em museus importantes mundo afora.
Na nossa ignorância infantil não sabíamos que estávamos frequentando a casa do maior escultor de carrancas de todos os tempos no Vale do São Francisco.
Biblioteca Campesina, 2 abril 2024
(*) Por Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.