Análise da tragédia gaúcha e o impacto das queimadas e do neoliberalismo na agricultura e na economia
Em 21/10/1901, Euclides da Cunha publicou, no jornal O Estado de S. Paulo, seu artigo “Fazedores de desertos” (E. da C., Obra Completa, Nova Aguilar, RJ, 2009), onde descrevia o uso de queimadas para plantações, o modo usado pelos índios brasileiros.
“Na agricultura do selvagem era instrumento preeminente o fogo. … Renovavam o mesmo processo na estação seguinte, até que, exaurida, aquela mancha de terra fosse abandonada em caapuera, jazendo dali por diante para todos sempre estéril”. “Veio depois o colonizador e copiou o processo”.
Assim, no início do século, o autor de Os Sertões já alertava para um processo inadequado da agricultura brasileira.
Citando o historiador inglês Henry Thomas Buckle (1821-1882), que teve excepcional acolhida no Brasil, escreveu Euclides da Cunha que Buckle “não entenderia as páginas que escreveu sobre uma natureza que acreditou incomparável no estadear uma dissipação de forças, wantonness of power, com esplendor sem par”.
“Porque o homem, a quem o romântico historiador negou um lugar no meio de tantas grandezas, não as corrige, nem as domina nobremente, nem as encadeia num esforço consciente e sério. Extingue-as”.
O ambientalista Heverton Lacerda, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos (8/5/2024), afirma que “além de ações imediatas para mitigar os efeitos da crise climática, devemos eliminar a queima de combustíveis fósseis”, pois segundo este pesquisador, “o que está acontecendo no Rio Grande do Sul pode ser o começo de uma situação que tende a aumentar muito”.
O australopiteco que se desenvolveu até a forma física que portamos hoje, quando ainda residente na Etiópia, há 30 mil anos, só chegou ao nível civilizacional, do qual nos orgulhamos, pela descoberta e pela sábia aplicação das energias fornecidas pela natureza.
A última energia descoberta e aplicada foi a de origem fóssil: o carvão mineral (1760) e o petróleo, cerca de 100 anos depois (1859).
Porém as energias fósseis, principalmente o petróleo, na forma líquida (óleo) e gasosa (gás natural), mudaram a correlação das forças político-econômicas e a face do mundo.
E suas distribuições lembram muito mais a das riquezas e estão bem distantes da desejada igualdade entre os homens.
Hoje, no ano de 2024, podemos identificar o acúmulo de reservas de petróleo concentrado em quatro polos. De maior volume o do Oriente Médio (Arábia Saudita, Irã, Iraque, Kuwait, Emirados Árabes, Catar); seguem-se, parelhos, os da América Latina (Venezuela, que detém a maior reserva de petróleo do mundo, o Brasil, com o Pré-sal, México, Equador, Colômbia, Argentina), e da Federação Russa (Rússia, Cazaquistão, Azerbaijão, Uzbequistão, Paquistão), ficando o quarto polo na África (Líbia, Argélia, Angola, Egito, Sudão).
Breve evolução do uso e gestão do petróleo
Bem no meado do século 19, no Azerbaijão e nos Estados Unidos da América (EUA), foram descobertas reservas de petróleo e, logo a seguir, nas mãos dos Rockefeller e na dos irmãos Nobel, 1870, começam as produções e comércio. O mundo passa por enorme mudança com a introdução do petróleo: o novo produtor de energia.
Entre as importantes alterações está a possibilidade de armazenar esta produção para os momentos necessários e transferi-la de um continente para outro.
O mundo desenvolvido se lança na descoberta e apropriação de reservas de petróleo. Em 1909, a Inglaterra cria a Anglo-Persian Oil Company para explorar as reservas do atual Irã.
Em 1922 ocorrem dois eventos políticos e econômicos que forçam alterações no sistema liberal com que era, até então, tratado o petróleo: criação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e esgotamento das reservas, que davam autossuficiência de produção de petróleo aos EUA.
Em 1928, no Castelo de Achnacarry, na Escócia, reúnem-se os principais responsáveis pela produção do petróleo para estabelecer as regras que seriam doravante adotadas. Dá-se o nome de Cartel das Sete Irmãs, a divisão do mundo entre as grandes petroleiras de então: Royal Dutch Shell (Shell), Anglo-Persian Oil Company (BP), Esso (Exxon), Standard Oil of New York (Mobil, incorporada à Exxon), Texaco (Chevron), Standard Oil of California (Chevron) e Gulf Oil.
Com as mudanças ocorridas desde a desregulação financeira dos anos 1980, com a divulgação do Consenso de Washington (1989) e o fim da URSS (1991), o mundo do petróleo também se reestruturou.
Ao invés das Sete Irmãs, temos, no século 21, grandes empresas e os Estados Nacionais. As maiores empresas são: Rosneft e Gazprom (russas), Saudi Aramco, Sinopec – China Petroleum & Chemical Corp, Exxon Mobil e Chevron Corp. (estadunidenses), Shell PLC (anglo-holandesa), PetroChina, BP PLC (inglesa), TotalEnergies (francesa), Petrobrás, Equinor (norueguesa), Lukoil e Transneft (russas, a última com monopólio dos oleodutos), China National Offshore Oil Corporation, Repsol (espanhola) e ENI (italiana).
No entanto, a invasão neoliberal nos países do Atlântico Norte, que o jornalista Pepe Escobar denomina Otanistão, trouxe o poder para as finanças apátridas incluindo suas áreas de influência. Assim temos empresas cuja propriedade é estatal e aquelas que são controladas pelos gestores de ativos. O que nominalmente restou das Sete Irmãs são empresas cujo controle está na BlackRock, Vanguard, Fidelity, State Street, JP Morgan Chase, Goldman Sachs, Allianz, Amundi, UBS Suíça, entre outros gestores de ativos, captadores e investidores financeiros.
Pode-se estabelecer a situação internacional de hoje, não mais dividida entre capitalismo e socialismo, como no século 20, mas entre a unipolaridade das finanças e a multipolaridade de Estados Nacionais. O Otanistão é o mundo da unipolaridade financeira, embora se aproveite de Estados militarmente fortes como os EUA, que, efetivamente, sempre foi desde sua Constituição de 1787 um Estado plutocrático.
A transformação política no Brasil
A História do Brasil é uma história de colônia, com período pequeno, mais fecundo, de autonomia. Este período de autonomia é conhecido como Era Vargas e durou de 1930 a 1980, ou seja, 50 anos nos quase 500 de existência, que se iniciam com o estabelecimento das Capitanias Hereditárias (1533).
Entendemos que este novo período colonial não está mais subordinado a algum Estado Nacional, porém ao sistema financeiro apátrida, e teve início com o governo do general João Baptista Figueiredo, permanecendo até hoje.
Nada comprova melhor esta situação do que o protagonismo e importância política dos presidentes do Banco Central do Brasil (Bacen). O Bacen foi criado em 12 de março de 1965 pelo marechal Castelo Branco. O atual presidente tem mandato até 2025, assim, em 60 anos de existência, terá 27 presidentes, sendo os períodos mais tumultuados os do governo Sarney (seis presidentes) e FHC (quatro), quando foram lançados planos econômicos e mudanças de moedas.
Ao sancionar a Lei Complementar 179/2021, Jair Bolsonaro abriu mão do encargo do Poder Executivo de administrar a moeda brasileira, entregando-o às finanças apátridas. É a situação colonial em que vivemos.
Um Estado colonizado pelas finanças não tem por objetivo a prestação de serviços que é mais importante de suas funções: o serviço de defesa nacional, de desenvolvimento político, social e econômico, de manter todas atividades no seu mais elevado nível tecnológico, promover a educação, a saúde, a moradia, a mobilidade urbana, e as condições de vida saudável a toda população, urbana e rural, e atuar sempre como planejador e fiscalizador, sendo perfeitamente adequada sua ação como executivo quando não for possível entregar a empresas brasileiras a incumbência da atividade.
O Estado não é mínimo nem máximo, é o que a sociedade define, para o que ela terá multiplicidade de informações, inclusive a do próprio Estado.
O que castiga o povo gaúcho, conforme se depreende das entrevistas, das manifestações em redes sociais, das notícias que chegam são vários governos com caráter ideológico neoliberal, promovendo a privatização de bens públicos, a entrega de responsabilidade do Estado, como o fez Bolsonaro para administração da moeda, a interesses que nem mesmo são brasileiros.
A solução para o Rio Grande do Sul e seus municípios começa pela reorganização do Estado, assumindo a responsabilidade das atividades relativas ao exercício da soberania e à construção da cidadania, integral e universal.
Não é buscar culpado em fontes de energia, mas saber que as finanças perseguem o uso dos combustíveis fósseis porque deixaram de ter o controle sobre suas reservas e, consequentemente, sobre suas produções.
É entender as condições do solo, por meio de empresas públicas que examinam suas características e recomendam ações, não para obter lucro para o sistema empresarial do qual fazem parte, mas por ser o modo mais correto e adequado às condições nacionais.
É entender também que um povo sem informação é um povo vulnerável, e a informação além de dever do Estado deve ser incentivada a divulgação por fontes de diferentes interesses políticos e ideológicos. Quando o senador gaúcho do Republicanos diz ser o comunismo o maior problema do Brasil, ele está deseducando seus eleitores pois não promoveu o contraditório, a capacidade de cada pessoa entender o que significa esta ou qualquer outra ideologia e o que cada uma pode trazer para enriquecer ou escravizar nosso povo e nosso Estado.
A ignorância, que vem sendo cultivada pelas finanças apátridas, desde 1980, é das grandes responsáveis pela tragédia gaúcha, pelo desemprego e pela miséria que se vê nas ruas brasileiras.
É hora de sairmos da letargia para luta pelo reerguimento do Brasil, pela reconquista do que nos foi tomado nas privataria desde 1980, de voltarmos a dizer não às intromissões de poderes estrangeiros aos nossos projetos de autonomia e de crescimento do País.
(*) Por Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil