É impressionante como Osório Alves de Castro, fundado em personagens do Rio Corrente, alicerçado na imensidão do Rio São Francisco, concentrado na Santa Maria da Vitória da virada do século XIX para o século XX, consegue revelar-se universal.
Nele, é absolutamente verdadeiro que o universal nasce na aldeia. Quando se o lê, não soam fortuitos e nem como resultado de gentilezas protocolares entre escritores os elogios de Guimarães Rosa ao seu gênio inventivo.
Falo de dois romances extraordinários para dizer um pouco dele, tão esquecido do grande mundo literário dos dias de hoje: Porto Calendário e Maria fecha a porta prau boi não te pegar (Edições Símbolo, São Paulo).
O primeiro é seu romance-referência, épico do São Francisco. O segundo, a continuidade das águas e da beira das águas do São Francisco e de seus afluentes, com forte presença feminina.
Mergulhar nesses dois textos é compreender o Brasil profundo pelos olhos da ficção, aqueles que melhor enxergam o mundo.
Nos dois, aparece a luta renhida entre o velho e o novo mundo – entre a Monarquia que se ia, a República que chegava. Luta regada a sangue, é verdade.
E não custa lembrar, como se lembra nos livros, o Conselheiro e o genocídio final.
Lembrar os coronéis, a imensidão das terras que ocupavam, a gadaria espalhada pelos campos, os jagunços sob o comando deles, a resistência à nova lei que chegava com a República.
Mas, ainda a seguir por essa opção de leitura dos dois livros, lembre-se, também, que a República negocia, transaciona com o velho mundo, e este também com ela.
Não são rupturas bruscas que se verificam. Estancadas as tentativas à Conselheiro, o resto é acomodação, jeitinho, conciliação entre o velho e o novo, para que o novo, a tímida República, vá se afirmando sem atentar contra os velhos interesses de classe.
Mas essa leitura carrega um viés sociológico que pode prejudicar a grandeza de Osório Alves de Castro. Pode levar a que se desconheça o que pode ser o alumbramento da leitura, a poesia que emana dela, a capacidade que ele tem de reter, recriando, a linguagem do povo do São Francisco, captar o riquíssimo imaginário popular, criar personagens dignas de um Guimarães Rosa ou um Gabriel García Márquez, e nisso não há qualquer exagero, creiam. Nele, vamos perceber o quanto Conselheiro povoou corações e mentes do povo sertanejo.
Quanta poesia nas aventuras de Maria – em Maria fecha a porta prau boi não te pegar – tentando compreender-se e compreender o mundo da cidade grande – Juazeiro -, perdendo a inocência, sem perder a ternura, uma mulher estupefata diante do espelho, perdida nos embaraços da esperança. Ou em Orindo, o jovem de Porto Calendário, síntese da luta entre o velho e o novo mundo, que lembrava o dito dos mais velhos sobre o Rio São Francisco: Quando estiver desesperado olhe o rio escorrendo dia e noite, anos e séculos e diz pra gente – Aguenta!. Há jagunços pra tudo quanto é gosto. E a preciosa definição: O jagunço é consequência de serviço num sonho de ser gente.
É como se Osório Alves de Castro conseguisse, ao promover um diálogo tão intenso entre os personagens, acompanhar o permanente delírio criativo de um povo, de uma cultura muito específica, aquele da beirada das águas, cheia de dragões da maldade, de são jorges, de santeiros milagrosos, de beatos e de coronéis violentos, na liça com os desvalidos, e fracos, quando examinados na sua privacidade. Há momentos proustianos nas reflexões inocentes de Maria: Cada cheiro deve ter sua saudade.
Rica em ensinamentos, a luta dos coronéis de Santa Maria, os decadentes Alfonsos, os emergentes Bê Martins e Kelemente Araújo. A decadência do ciclo do gado (nos Alfonsos), a força do comércio (Bê Martins) e da agiotagem (Kelemente de Araújo).
Fortes e fracos, como já se disse: Quem é esse Kelemente de Araújo? Tomado pela obsessão da grandeza excede-se. Não teve filhos, seu intento fixo é reproduzir-se nas propriedades, nos empreendimentos, no dinheiro, nos crimes e no delírio.
Insista-se: o melhor é a leitura, o desfrute da poesia literária de Osório Alves de Castro. Navegar com ele pelo São Francisco. Navegar é preciso, viver não é preciso.
Sonhar, ancorar num dos muitos portos, conhecer os romeiros de Bom Jesus da Lapa, encantar-se com a Barra do Rio Grande, reencantar-se em Santa Maria da Vitória, andar por mundos em extinção, cheios de encantamento, envoltos no misticismo profundo das gentes que não queriam outras explicações que não as dos seus santos e que navegavam com as carrancas de Biquiba espantando todos os males. É um delírio, um sonho a leitura desse Osório.
Emiliano José é jornalista, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, autor de Lamarca, o capital da guerilha [com Oldack Miranda], Carlos Marighella, o inimigo número da ditadura militar e Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento [5 volumes], entre outros. É deputado estadual pelo PT.
21/01/2006
Caderno Cultural A Tarde – 21/01/2006
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(*) Por Emiliano José, escritor e jornalista. Doutor em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universidade Federal da Bahia [UFBA]. Autor de, entre outros, Lamarca – o capitão da guerrilha [em coautoria com Oldack de Miranda], Carlos Marighella – O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – biografia [2 vols.] e Galeria F [5 vols.]. É membro da Academia de Letras da Bahia, ocupante da cadeira nº 1, cujo patrono é o renomado historiador marxista Luis Henrique Dias Tavares.
(*) Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.