Há 3 anos, Marielle Franco, vereadora do PSOL na capital do Rio de Janeiro, foi assassinada brutalmente pela milícia carioca. O crime de mando ocorreu no dia 14 de março de 2018, quando ela seguia no carro para casa, após expediente na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Ela ia com seu motorista Anderson Gomes e a jornalista Fernanda Chaves, que teve de fugir do Brasil para ficar viva.
Dois anos após o crime, Fernanda foi aconselhada por amigos especialistas na área de segurança, até mesmo pela Anistia Internacional, a deixar o Brasil. Para chegar no Aeroporto Internacional Tom Jobim, na Ilha do Governador, ela teve de se encolher no vão do banco traseiro de um carro blindado e, escoltada por dois veículos da Polícia Civil, vestida apenas de um jeans, uma blusa de malha fina e uma sandália de plástico, partiu para a Europa com um boné e óculos escuros. Saiu às pressas para uma viagem não planejada e, nem sequer, desejada.
Três anos depois, o assassinato da vereadora e de seu motorista continua sem esclarecimento: quem mandou matar Marielle Franco e por quê? A Justiça brasileira não responde. As investigações sobre o crime vêm se arrastando mais do que lentamente ao longo desses 1.095 dias, apesar das cobranças da família, dos amigos, dos colegas de partido, dos apoiados por vozes progressistas e de toda a sociedade brasileira, vítima, constante, de crimes de mandos contra lideranças populares. “Todo mundo cobra e exige justiça. Se o caso de Marielle está nesse nível de obscurantismo, imagine o de outros assassinatos de lideranças populares País afora”, observa Rita de Cássia Oliveira, do movimento de mulheres negras de Goiânia.
Os acusados pela execução do crime, Ronnie Lessa (sargento reformado da Polícia Militar) e Élcio Queirós (ex-PM) já foram presos, mas até hoje não se sabe quem foram os mandantes e as reais motivações do crime. O histórico da investigação envolve entre os suspeitos não apenas integrantes das milícias, mas também políticos do Estado do Rio de Janeiro e dos Poderes Públicos nacionais.
Memória, homenagens, ameaça de morte e ataques às mulheres ligadas à Marielle
Uma reportagem do UOL denuncia a tensão das ameaças de morte que mulheres ligadas à Marielle ou à investigação do crime têm vivido. “Os casos vão de ataques virtuais a planos concretos (segundo a polícia) de assassinato. Para especialistas, ativistas e parlamentares, a situação realça o crescente aumento da violência política no País. Um dos casos mais aberrantes e que também está sem solução por parte das autoridades é o da deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ).
“Nosso balanço sobre esse crime é o pior possível. São 3 anos do assassinato da Marielle e do Anderson e a gente não tem as respostas adequadas e à altura do tamanho e da gravidade dessa situação. Marielle foi assassinada no exercício da função parlamentar como vereadora do Rio de Janeiro, a quinta vereadora mais votada do município, e até agora a gente não sabe quem mandou matar Marielle e quais são os elementos que estão por trás do seu assassinato, como qual é a intenção e quais os interesses que estão por trás”, afirma Fábio Félix, deputado distrital do PSOl, na Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).
Ele observa que se trata de mais um absurdo. “Não é um ataque contra o PSOL, contra a esquerda, mas um ataque contra a democracia. Quem perde é o Rio de Janeiro e o País e sua democracia quando não dá uma resposta adequada a um caso tão grave como este. É muito triste. A gente não quer saber só quem apertou o gatilho. A gente quer saber quais os interesses e quem mandou matar Marielle. Por isso, nossa luta por justiça segue muito forte”.
Félix informa também que, além da justiça, há também a luta pela memória. “A memória de Marielle é algo importante para nós porque significa, primeiramente, a defesa da democracia, sem dúvida, mas também a defesa de uma série de pautas que ela, enquanto mulher negra, precursora, lésbica, vanguardista, digamos, na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, fez toda a diferença numa série de pautas. A gente tem lembrado sua memória em todo o País e temos, em Brasília, uma praça, que é a Praça Marielle Franco no Setor Comercial Sul, que é uma lei do Distrito Federal, que muito nos honra também”, afirma o deputado distrital
A demora no esclarecimento do crime e da localização do mandante só amplia e fortalece, no mundo inteiro, a força do nome e da pauta de Marielle Franco. A cobrança pela identificação do mandante, dos interesses e da justiça brasileira ganha cada vez mais força fora do País. Neste domingo, por exemplo, ela e o motorista Anderson foram lembrados na Itália, país que deu ao terraço da biblioteca delle Oblate, o nome de Marielle Franco. Na Suíça, houve um ato público em sua memória.
Em 2019, a Prefeitura de Paris, França, inaugurou um jardim com o nome da vereadora assassinada, localizado perto à Gare de l’Est, uma das principais estações de trem, no 10° distrito da cidade: um espaço com 2,6 mil m² com cerca de 70 árvores, a maior parte frutíferas.
Pessoas próximas de Marielle vivem sob ameaça de morte
A história mais simbólica das ameaças de morte é a da deputada federal Talíria Petrone (PSOL-RJ), amiga e companheira de partido político de Marielle. Matéria do UOL mostra que, em junho de 2020, Talíria foi, oficialmente, informada pela Polícia Civil do Rio de que mais de cinco gravações planejando a sua morte haviam sido interceptadas. Depois disso, a parlamentar se mudou para outro Estado e não voltou mais ao Rio. Talíria já fora ameaçada antes da morte de Marielle, quando era vereadora em Niterói.
“Como se as ameaças anteriores à minha vida não fossem suficientes, alguns dias após o nascimento da minha filha recebi novas intimidações”, contou a deputada. “Em junho, o Disque Denúncia informou à Câmara dos Deputados que havia mais de cinco gravações de pessoas falando sobre a minha morte.”
A parlamentar denunciou as ameaças à relatora da Organização das Nações Unidas (ONU) para execuções sumárias, Agnes Callamard. Também pediu que a organização cobre do governo brasileiro respostas sobre o seu caso e o de Marielle.
“Não tenho a menor dúvida de que a execução da Marielle é a expressão de uma democracia incompleta no Brasil, cada vez mais fraturada”, disse. “Não é só a questão de uma parlamentar executada; a não resolução do crime escracha o domínio da milícia. A milícia está dentro do Estado, elege parlamentares. Ela junta três esferas: política, econômica e braço armado. Não é exagero dizer que a milícia governa o Rio.”
Além dos planos que chegam às autoridades, outro tipo de ameaça perturba essas mulheres. São os ataques públicos virtuais, feitos no anonimato da internet. Foi o que aconteceu com a deputada estadual Renata Souza, ex-chefe de gabinete de Marielle na Câmara Municipal. No Facebook, um usuário disse que ela “falava demais” e iria “perder a linguinha”.
“As ameaças vêm em diferentes sentidos e fazem parte de uma política do ódio acrescida de uma insatisfação por estarmos ocupando esse lugar de poder. Esse é um aspecto muito característico dessas ameaças”, diz Renata, que também já teve endereço exposto nas redes por protestar contra Jair Bolsonaro. “O assassinato da Marielle abriu uma porteira de naturalização da violência política”, afirma.
Anielle Franco, irmã de Marielle e criadora do instituto que leva o nome da irmã, também recebeu ameaças. “Foram ameaças bem pesadas por e-mail e no Instagram; duas no fim do ano passado e uma este ano”, contou Anielle. Ela pretende voltar à ONU e à Comissão Interamericana. “Eu não prestei queixa ainda, por isso não posso revelar o conteúdo das mensagens.”
Breve histórico da vida de Marielle Franco
Marielle era uma defensora dos direitos humanos, em especial dos negros e negras, mulheres, moradores de favelas, pessoas LGBTQIA+, uma população invisibilizada pelos preconceitos estruturais da sociedade brasileira. Seu assassinato, mais do que um ataque a essa luta, foi uma grave amaeaça à democracia brasileira. Conforme coloca a deputada estadual Renata Souza, que era sua assessora quando ocorreu o crime, “Marielle encarnava várias das vulnerabilidades do corpo ‘matável’ da nossa sociedade, que é o da mulher preta, pobre, favelada, LGBT. Foi um feminicídio político”.
Nascida no Complexo da Maré, Marielle começou a trabalhar aos 11 anos. Frequentou a primeira turma do pré-vestibular comunitário da Maré e ingressou com bolsa integral no curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Cursou mestrado em Administração Pública, na Universidade Federal Fluminense (UFF).
Sua trajetória é marcada pela combatividade, engajamento social e honestidade, tendo inspirado, em vida e após a morte, mulheres pretas e pobres de todo o mundo a lutarem por espaço na política e pelos direitos que lhes têm sido negados há tanto tempo.
A história e a luta de Marielle vivem e é por isso que seguiremos perguntando, quantos dias mais forem necessários: quem mandou matá-la e por quê?
Linha do tempo das investigações do assassinato de Marielle e Anderson
2007
Marielle entra para a equipe do deputado estadual Marcelo Freixo, eleito pela primeira vez, com uma campanha focada na defesa dos direitos humanos. Em seguida, assume a coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, responsável por receber denúncias contra policiais e pelo apoio jurídico e psicológico a familiares de vítimas de homicídios, inclusive policiais vítimas.
2008
O então deputado estadual Marcelo Freixo conclui a CPI das Milícias, pedindo o indiciamento de 225 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis. Em razão de ameaças sofridas, passa a viver sob a proteção de seguranças.
2016
Marielle Franco é eleita a vereadora mulher mais bem votada do Rio de Janeiro e a segunda do país, com 46.502 votos. Era sua primeira candidatura.
2018
14 março – Marielle Franco, aos 38 anos, e seu motorista, Anderson Gome, são assassinados a tiros dentro do automóvel em que voltavam de um debate com jovens negras na Casa das Pretas, na Lapa, Rio de Janeiro.
Setembro – a juíza Marcia Correia Hollanda, da 47ª vara Cível do Rio de Janeiro/RJ condenou o Google a retirar da plataforma YouTube os vídeos com conteúdo difamatório contra Marielle Franco.
Dezembro – em entrevista ao jornal “O Estado de S.Paulo”, o então secretário de Segurança do RJ, general Richard Nunes, afirmou que Marielle foi morta por milicianos que viam nela uma ameaça a negócios de grilagem de terras na Zona Oeste do Rio. A tese nunca foi comprovada.
2019
Janeiro – o major da Polícia Militar Ronald Pereira é preso por suspeita de envolvimento no crime. Ele vinha sendo investigado com base na suspeita de integrar a cúpula do chamado Escritório do Crime, um grupo de matadores de aluguel. Ronald foi denunciado à Justiça Criminal por comandar negócios ilegais, como grilagem de terra e agiotagem.
Março – são presos Ronnie Lessa, O sargento reformado da Polícia Militar (PM), e Élcio de Queiroz, ex-PM, suspeitos de serem os executores diretos do assassinato. De acordo com as investigações, o crime foi planejado minuciosamente durante meses.
Maio – uma operação da Polícia Civil e do Ministério Público, cujos alvos eram milicianos atuantes na cidade do Rio de Janeiro, prendeu dois homens, Rafael Guimarães e Eduardo Nunes, suspeitos de serem os responsáveis pela clonagem do carro Cobalt prata usado no assassinato da vereadora.
Junho – a polícia e a Marinha realizam uma operação no mar da Barra da Tijuca à procura das armas utilizadas no crime. Segundo as investigações, Márcio Montavano teria retirado as armas de um esconderijo e as teria levado – com ajuda da mulher de Ronie Lessa, Elaine Lessa; do irmão dela, Bruno Figueiredo; e de Josinaldo Freitas – até o barco de uma testemunha e as descartado próximo das Ilhas Tijucas. Elaine Lessa, também acusada de participar da milícia, está ligada à apreensão de 117 componentes de fuzil de uso restrito, uma das maiores já realizadas no Rio de Janeiro. Todos os citados foram presos em outubro de 2019.
2020
Fevereiro – um dos porteiros do condomínio Vivendas da Barra, onde morava Ronnie Lessa, afirma que Jair Bolsonaro, que também tem casa no condomínio, havia liberado a entrada de Élcio Queiroz no local no dia do crime. Bolsonaro era deputado federal à época e havia marcado presença na Câmara dos Deputados no dia. O porteiro, no entanto, voltou atrás e afirmou que errou ao dizer que havia falado com “seu Jair”. Um laudo assinado por peritos afirma que outro funcionário havia interfonado naquele dia para Lessa.
Março – a Justiça do Rio determina que Ronnie Lessa e Élcio Queiroz sejam julgados por júri popular pelas mortes de Marielle e Anderson, previsto para o fim de 2021. Os dois respondem por duplo homicídio triplamente qualificado por motivo torpe, emboscada e sem dar chance de defesa às vítimas. Os advogados informam que vão recorrer.
Maio – o Superior Tribunal de Justiça (STJ) nega a federalização do caso, mantendo as investigações com a Polícia Civil do Rio de Janeiro, como demandava a família da vereadora e o Ministério Público Estadual.
Junho – Maxwell Corrêa, sargento bombeiro, é preso, acusado de participar do planejamento do assassinato de Marielle e do descarte das armas do crime.
Junho – o delegado Daniel Rosa, responsável pela investigação, afirma que o Escritório do Crime não tem ligação com o atentado. Segundo ele, não há dados que provem que Ronnie Lessa integre o grupo.
2021
4 de março – o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro cria uma força-tarefa para atuar na continuidade das investigações dos assassinatos de Marielle e Anderson.
Com informações publicadas nos sites da Anistia Internacional, G1, UOL e site do PSOL.