China e Rússia entre alianças e tensões: o novo estágio civilizatório chinês e a estratégia russa de Putin no século 21
A China tem cultura milenar, mas sua história recomeça no dia em que Chiang Kai-shek, fugindo das vencedoras tropas de Mao Tse Tung, atravessou o Estreito de Formosa, se refugiando, protegido pelos Estados Unidos da América (EUA), na chinesa ilha de Taiwan. A criança que nasceu naquele dia já completou 75 anos.
O autor deste artigo já frequentava o primeiro ano da Escola Pública, criada por Getúlio Vargas no mesmo mês em que assumiu a Presidência do Governo Provisório da Revolução de 1930.
Veja o caro leitor o Brasil e a China de hoje. Um país colonizado pelos capitais apátridas e outro que causa inveja e reações hostis das potências hegemônicas por conquistar novo estágio civilizatório.
Recente entrevista de Sergio Amadeu, no podcast Tecnopolítica, com Tica Moreno, residente na China, pesquisadora da Baobab – Associação Internacional para Cooperação Popular, dá uma pista para identificar o mundo que separa Brasília de Pequim, que designamos por Novo Estágio Civilizatório.
Na China não existe morador de rua, ninguém passa fome, mas há milionários, com carros luxuosos, mesmo para padrão plutocrático estadunidense, transitando pelas ruas de Xangai. Milagre? Mas no país em que mais da metade da população se declara não teísta, sem religião alguma?
É óbvio que a resposta só pode ser uma: a construção política participativa, em que todos se consideram envolvidos e responsáveis, desde 1949. Dividamos em quatro segmentos o que constitui o Novo Estágio Civilizatório e explicitemos sua premissa básica.
O domínio do mercado é incompatível com o interesse da população em qualquer país. Esta é a razão da revolução capitalista ter ocorrido com a criação dos Estados Nacionais. O domínio do Estado pela elite fundiária e financeira o transformou em investidor, para benefício de pequena parcela, da construção capitalista, diferente em cada lugar.
Se na Inglaterra criou-se uma Câmara dos Lordes para garantir os privilégios, nos EUA o Estado construiu ou financiou a construção de ferrovias para facilitar a conquista dos espaços vazios, a formação das comunidades ao longo de estradas, modelo até hoje existente, e a distribuição dos bens produzidos pelas fábricas privadas, na quase totalidade com financiamento público. Em resumo, o Estado privilegiou uma classe, como estabeleceu a Constituição de 1787 e suas 27 emendas nos quase 240 anos de existência.
O segmento agricultura, que significa alimento, vida, é básico na construção do estágio civilizatório. Porém não basta distribuir terra. É necessário dar a condição de melhor utilizá-la, com critérios ecológicos, sem se deixar dominar pelos algoritmos do “mercado”. Ou seja, sob um controle nascido da formulação legal, com a participação mais adequada, nuns casos centralizada, noutros descentralizada. E um povo, milenarmente voltado para o campo, que aprendeu com a natureza as sutilezas da produção, é, simplesmente, deixa-lo decidir. Mas perguntamos ao caro leitor, que povo não se formou com a agricultura, que foi o passo seguinte do homem coletor e caçador?
O segundo segmento é a defesa. A recente guerra das tarifas teve do porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Lin Jian, a declaração que seu país está preparado para “qualquer tipo de guerra”, enfatizando que não se intimidará diante de pressões econômicas ou militares. A China anunciou também o aumento de 7,2% em seu orçamento de defesa para 2025, totalizando aproximadamente US$ 245 bilhões, reforçando seu compromisso com a modernização militar.
Poderia parecer incongruente para o país pacífico esta afirmativa, porém Lin Jian nada mais fez do que repetir o provérbio latino: si vis pacem, para bellum (se queres a paz, prepara-te para guerra).
O terceiro segmento está nas relações internacionais. Mais uma vez a direção da China, sob Xi Jinping, foi buscar no passado a resposta, recriando a Rota da Seda, que ligou a Ásia à Europa Central, entre 130 a.C. e 1453 d.C., sendo, em 2013, renomeada Inciativa do Cinturão e Rota (ICR).
Diferentemente das instituições oriundas da II Grande Guerra e dos Acordos de Bretton Woods, e mesmo dos Brics, a ICR não tem fórum para as decisões, nem elas são abrangentes. A grande novidade são seus acordos que valem somente para as partes contratantes, na imensa maioria de dois países, que, na mesa de discussão, são igualmente soberanos. Envolvia, ao final de 2024, 149 países: 53 da África, 34 da Ásia e Oriente Médio, 29 da Europa, 21 da América Latina e Caribe e 12 do Pacífico.
A soberania das partes coloca no outro lado da mesa Estados Teocráticos, como o Irã, socialistas e não religiosos como Cuba, e em diversos estágios de desenvolvimento, como o alto na República Tcheca e Hungria e extremamente baixo como na Guiné Bissau. Eventualmente algum projeto, quase sempre de infraestrutura de transporte, envolverá três, no máximo quatro países, incluindo a China, porém o procedimento será identicamente respeitoso da soberania das partes.
Nos percalços encontrado pela China está a agressão midiática que procura identificar este respeito pelos parceiros com a dominação no mínimo financeira como se encontra amplamente no mundo do “mercado”.
Por fim, o complexo e difícil mundo das tecnologias da era digital. O que encontramos hoje já difere dos anos 1990, quando o capital financeiro demoliu a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), que já era muito diferente de 20 anos antes, quando tinha início a terceira geração dos computadores com o IBM/360, o Burroughs 2.500, o Univac que colocou o homem na Lua.
O domínio do mundo virtual encontra até Bolsas de Valores, pois a multiplicidade de usos e sistemas permite tal diversificação que surgem empresas desenvolvendo aplicações e as comercializando. No mencionado podcast Tecnopolítica, os interlocutores tratam desta comercialização internacional dos algoritmos e a diferença de tratamento dado pela China. Mas não se trata somente da presença do Estado, que é fundamental para dar efetividade legislativa. É a inclusão das especificidades que crescem diferentemente conforme as necessidades locais e seus recursos que as Assembleias Provinciais podem prover, nos campos científicos e financeiros.
Esta complexa, sob diversos aspectos, governança vem sendo o mais significativo transformador da China com Xi Jinping e sua equipe. No referido podcast é mencionada a diversidade de “tratores”. Como se infere facilmente a diversidade de terrenos, do ponto de vista da composição, das configurações, das águas e outras variáveis exige uma homogeneização mínima, impraticável no sistema de acumulação capitalista, em especial de base financeira. E este tratamento quase individualizado não é compatível com a homogeneidade imperialista mas é facilmente absorvido numa negociação fragmentada como da ICR.
Assim temos este estágio civilizatório da China, sem correspondente nos EUA, na Europa e mesmo na Rússia. Erra quem atribuir simplesmente à presença Estatal, como quem a vê como uma consequência do “mercado” trazido por Deng Xiaoping.
É a governança que Xi Jinping desenvolve em seus discursos e documentos, calcada numa especificidade harmonizada de Confúcio, Mao e Xiaoping, pela equipe de Hu Jintao.
A Rússia de Putin
A URSS teve triste fim para quem revolucionou o mundo com o comunismo marxista-leninista. Os governantes pós-stalinistas se deixaram iludir pela Guerra Fria, incentivada pelo Ocidente, e pelas conquistas industriais e tecnológicas obtidas até Geórgiy Malenkov (1953-1955). A partir de Nikita Khrushchov (1955-1964) e, principalmente, no longo governo de Leonid Brejnev (1964-1982), a cúpula do partido se acomodou nas datchas, onde Brejnev teria sido envenenado, e nas mordomias nas quais levavam suas vidas burocráticas.
A partir de Iuri Andropov (1982-1984), mas, principalmente no ano de governo de Kostantin Chernenko e nos seis de Mikhail Gorbatchov (1985-1991), o ocidente corrompeu o governo soviético. A expressão mais adequada é que a URSS não se extinguiu; se dissolveu, com a renúncia de Gorbatchov, certamente satisfeito com a Fundação que leva seu nome.
Boris Iéltsin governa de 10/7/1991 a 31/12/1999, abandonando, ao meio-dia da véspera do Ano Novo, o seu cargo, assumido então por Vladimir Putin. Excluindo Victor Cernomyrdin, 1º ministro de 1992 a 1998, até a renúncia, ou seja, de 1998 a 1999, Iéltsin teve quatro primeiros ministros, indicando a dificuldade de sua aceitação pelo parlamento e pelas Forças Armadas da Federação Russa.
Putin assume com apoio das Forças Armadas e procura unificar, numa linha vertical, centralizadora, o Poder Executivo, priorizando Moscou nas receitas tributárias e das leis federais sobre as locais.
Havia um poder marginal, constituído ainda no período soviético, que se fortaleceu extraordinariamente no Governo Iéltsin. Parte se oficializou, parte se infiltrou no Estado e parte manteve o clima marginal, corrompendo Estado e Sociedade.
Putin usou sobriedade orçamentária, aplicando na Instrução (aumento de 4,7 milhões de estudantes (2000/2001) para 7,5 milhões (2007/2008) no nível universitário), na Saúde, imunização pelas campanhas de vacinação embora com resultados insatisfatórios, e nas Forças Armadas em tecnologia e armamentos. País de fortes bases religiosas, levou Putin a se aproximar da Igreja Ortodoxa, participando de pequenas peregrinações e fotografia junto ao Patriarca Aleixo II, falecido em 2009.
Nos anos 2000 surgiram as Revoluções Coloridas em regimes simpáticos à Rússia que mostraram ser a habilidade diplomática de Putin insuficiente para tirar o medo da Rússia e entender não ser mais um país comunista. Isto ocorreu graças às campanhas persistentes, insidiosas e malévolas de toda mídia ocidental em uníssono, que prosseguem ainda hoje.
Nos últimos dez anos, principalmente com a agressão da Otan, via Ucrânia, reascendeu a campanha contra a Rússia. A eleição de Donald Trump abre um novo caminho para a Rússia, e Putin parece estar interessado em trilha-lo.
Se do ponto de vista militar e econômico a luta na Ucrânia demonstrou a fraqueza da Otan e a incapacidade da Europa Ocidental e seus novos parceiros, do ponto de vista político não se observou qualquer recuo da Europa e suas colônias nas agressões à Rússia. Ao contrário, o recente pronunciamento de Emmanuel Macron é um verdadeiro grito de guerra “pela manutenção da Europa livre” (sic).
De modo geral a Rússia e a China têm se mostrado aliadas, ainda que haja muitas mais razões para as separar do que para as unir, não sendo desprezível, atualmente, o fator religioso.
O Patriarca Cirilo I, que substituiu Aleixo II, tem interesse em expandir a ação da Igreja na área da Instrução, da Assistência Social e da ortodoxia religiosa, interferindo nas políticas defendidas por Putin. Ainda não sendo suficiente para retirar-lhe o apoio eleitoral, como se observou nesta eleição de 2024, vencida por Putin com 87,3% dos votos, com a frequência recorde de comparecimento às urnas.
Conclusão
Propusemo-nos analisar as geopolíticas para o século 21 e chegamos a uma questão que não está nas avaliações dos autores, acadêmicos, jornalistas e políticos. A Rússia prosseguirá aliada ou se transformará em rival da China?
Há muito mais de circunstancial do que de ideológico nesta opção. Principalmente porque nenhum destes dois países é marxista, no sentido da Revolução de Outubro de 1917. A Rússia até se aproximou da Igreja Católica Ortodoxa, e a China reincorporou Confúcio em suas ações prospectivas.
É óbvio que nem o governo plutocrata de Trump, nem o de Macron se declaram contra melhores condições de vida para a população de seus países, embora suas ações nada façam para garantir emprego, educação, saúde e um mínimo de dignidade, devida a qualquer ser humano.
Acresce que a China, diferentemente de todos concorrentes à hegemonia, passou a viver um novo patamar civilizacional, cuja força ainda não se pode medir, mas que já a colocou acima dos EUA, da UE, do Reino Unido, e, mesmo, da Rússia, em qualquer avaliação, mesmo com os critérios que já se demonstram superados. O que se dirá nestes novos critérios vividos neste novo patamar.
Um novo leque de análises que representarão os próximos passos nos permitirá estar vendo um futuro ou mais uma frustração que a história nos apresentará.