A questão colocada pela população e pelos políticos é: é perigo sair de casa ou ficar em casa? Na pandemia do Covid-19 nada tem sido tão repetido que a expressão: “fique em casa” significando “isolamento social”. A palavra isolamento subentende cortar relações, e por isto novas mensagens oficiais estão mencionando “distanciamento social”, com ênfase no afastamento espacial e não na clausura.
Ficar em casa não representa clausura ou prisão. Torna clausura quando não se pode abrir a porta por dentro, quando alguém a fechou de fora, sem autorização, deixando a porta sem saída. A saída, quando dialogada e negociada faz da casa o espaço de ida e volta, e voltar para casa tem uma representação de estar em seu espaço de vida, de convivência, de abrigo, de refúgio, de acolhimento, de afastamento dos perigos.
A convivência em casa é uma construção social de interações, pressupondo relações de poder demarcadas por respeito e diálogo ou por autoritarismo e violência. O padrão de distanciamento social quando se está fora de casa ou de convivência quando se está dentro depende de regras compartilhadas. Existem regras heterônomas, vindas de fora, por exemplo do Governo, em razão de riscos e ameaças.
As regras de dentro precisam se articular com as regras de fora em razão do bem-estar comum e da sobrevivência do grupo. As regras de fora precisam estar fundamentadas na lei, na razoabilidade e na ciência, devendo ser explicitadas democraticamente para serem legítimas, na garantia do direito de ir e vir e do direito de proteção à vida.
Tanto o distanciamento social como a convivência interna na casa precisam ser dialogados e democraticamente elaborados. Ou seja, com os governos respeitando a lei, o conhecimento e a escuta da população e com as pessoas em convivência na casa, inter e intrageneracionalmente, definindo papeis e tarefas. Se na mesma casa conviverem várias gerações, por exemplo avós, pais e netos ou tios, irmãos e sobrinhos é preciso olhar para fora e para dentro.
O olhar colaborativo para dentro pressupõe a desconstrução da violência ou da dominação masculina ou patriarcal e da opressão contra crianças e adolescentes. É a oportunidade de se aprender a compartilhar o tempo, os equipamentos, as tarefas, por exemplo, escolher juntos: que programa ver na TV, se houver só uma; que espaço ocupar; que tarefa fazer para não sobrecarregar ninguém e nem reforçar papeis dominantes e discriminatórios como “ lugar de mulher é na cozinha”.
O distanciamento de pessoas fora da casa é uma oportunidade de se construir a convivência de dentro. O ficar em casa reduz o perigo ou a ameaça de contaminação e de congestionamento dos serviços de saúde, mas também reduz as condições de sobrevivência do grupo com desemprego, perda de renda para muitas pessoas e também afeta a atividade econômica.
Em consequência, implica redimensionar esse impacto que tanto de fora, pelas empresas, o governo e a sociedade, como dentro. É obrigação do Estado elaborar e implantar medidas para manter a sobrevivência do cidadão e contribuinte dentro e fora de casa pela garantia do emprego e da renda que assegurem a vida.
Aliás, é a oportunidade para que o Estado também mude seu padrão, ao invés de reprodutor da desigualdade para o de garantidor da cidadania. Dentro da casa, é a oportunidade para se tomar consciência da cidadania social e da cidadania individual que se exerce na convivência. Idosos, adultos, crianças são cidadãos e cidadãs dentro e fora de casa.
Exercer a relação com a cidadania significa descartar o risco de violência e de morte fora e dentro e fora de casa para que o risco de infecção do vírus não vire solidão e nem briga. Solidão tóxica de perda dos vínculos e brigas tóxicas de destruição de vínculos.
Seres humanos são feitos de vínculos para sobrevivência coletiva. Vínculo assegurado pelas políticas de efetivação e não de redução de direitos por parte de fora, do Estado, das empresas e de empregadores, buscando-se alternativas de negociação e de uso do home office.
As conexões horizontais pela internet e telefone reduzem o distanciamento e ajudam as possibilidades de aproximação de dentro para fora. Grupos de WhatsApp favorecem as relações de dentro, afetivas ou de amizade, podendo haver mais circulação de dentro com a redução da circulação fora.
A redução da circulação fora precisa levar em conta a vida e o sofrimento dentro de casa, ponderando-se que a economia de mercado, de especulação nas bolsas, de exploração do trabalho é um modelo que afeta vidas, produz desigualdade e riscos.
Sair de casa com pandemia para manter o lucro e a renda pode ser tóxico, um risco de contaminação e morte para muitos, mesmo que haja autoridade que diga que o povo esteja acostumado a viver no esgoto.
Ficar em casa pode ser tóxico se houver solidão e não solidariedade, se houver brigas, violência, se não houver cidadania e garantia de sobrevivência. Adoecer e morrer por contaminação não configura um acidente natural, é uma responsabilidade de fora e de dentro de casa, de cidadania.
As interações mudam de padrão na quarentena, sendo que o padrão autoritário, autocêntrico e machista não dá conta da convivência dentro de casa e o padrão mercadológico de desigualdade e do lucro a todo custo não dá conta da vida e da cidadania e da proteção social que é fundamental para se manter a vida fora e dentro de casa, a sobrevivência do grupo e a garantia da cidadania apesar do mercado que só queira focar no lucro, mesmo podendo proteger mais as pessoas com redução da ganância.