No ano em que completa 61 anos Brasília pode perder um de seus redutos mais charmosos e criativos. Uma cidade precisa de espaços de encontro se quiser ter uma cultura e uma arte, e o Feitiço Mineiro, nos últimos 32 anos, representou isso com excelência
Quando em 1989 o mineiro de Cruzília Jorge Ferreira criou o bar e restaurante especializado na culinária de sua terra, ele estava criando também um novo modo de estar na Capital da República. Brasília sempre teve essa vocação para receber microcosmos de outros lugares, e Jorge soube conduzir essa ideia com competência e amor.
Passados alguns anos de seu nascimento, o Feitiço Mineiro logo se tornou reduto da culinária mineira e da música brasileira. Foi tudo muito rápido, mostrando que algumas ideias já nascem clássicas.
O compositor piauiense Clodo Ferreira, radicado em Brasília desde os anos 1960, lembra que foi no Feitiço que ele fez seu primeiro show solo, depois do fim de Clodo, Climério e Clésio, “os três irmãos que não formavam um trio”, como alguém já disse, mas que conseguiram criar, cada um impondo seu próprio estilo, uma obra única na Música Popular Brasileira.
Com o tempo, a ligação de Clodo com o lugar tornou-se tão forte que todos os anos no mês de outubro, quando se celebra o aniversário da casa, o músico era convidado para abrir a temporada de shows. Essa amizade resultou até em música: a canção Feitiço Mineiro, composta em parceria com o Ribah Nascimento, do grupo Placa Luminosa. A história virou até um causo, como aqueles que o Jorge Ferreira gostava de contar e como relata Clodo.
“O Jorge me perguntava: ‘Clodo, essa música é uma homenagem ao Feitiço Mineiro?’ E eu respondia, em tom de deboche: ‘Claro que não! Só porque tem o mesmo nome, não quer dizer que seja uma homenagem’. E toda vez que eu tocava a música nos shows ele repetia a mesma pergunta e eu sempre respondia da mesma maneira. Virou uma brincadeira, claro, pois todo mundo sabe da minha relação forte com o Feitiço”, explica Clodo.
Na verdade, a música Feitiço Mineiro é uma bela homenagem à viola mineira e, claro, presta tributo ao lugar onde ela sempre teve espaço garantido.
Baden e Grande Otelo
Denise Pereira, viúva de Jorge Ferreira, e que participou desde o começo da construção da obra cultural chamada Feitiço Mineiro – que conseguiu misturar culinária, música e convivência política e social no mesmo espaço – nos conta dois momentos marcantes dessa história.
“Um presença inesquecível foi a do Baden Powell, que se apresentou no Feitiço em 1998. Ela já velho e adoentado, fez um show impecável. Outro momento foi quando recebemos a visita do Grande Otelo, que veio participar do Festival de Cinema de Brasília. Mineiro, comeu de se fartar e contou muitas histórias”, lembra Denise.
Semanas depois Grande Otelo morreria ao desembarcar em Paris, onde receberia outra homenagem. O caso, claro, virou um causo na cidade, ao melhor estilo do Jorge Ferreira, quando as pessoas começaram a dizer que o grande ator havia morrido por ter se empanturrado com as delícias do Feitiço, proibitivas a um senhor de 78 anos.
Plateia em transe
O produtor musical Robson Silva, responsável por levar Baden Powell ao Feitiço, nos conta outra história saborosa, quando convenceu o músico Sérgio Ricardo, que também viera a Brasília para ser homenageado no Festival de Cinema pela trilha que fez para o filme Terra em transe, do Glauber Rocha, a tocar no local.
“No início ele recusou, dizendo ter vindo somente para a homenagem. Mas expliquei que a Casa era pequena e que o show seria para o pessoal do Festival. Com esse argumento ele aceitou. Na passagem de som, o violão do Sérgio deu problemas técnicos. Consegui emprestado um Takamine (um dos melhores violões do mundo), mas que também estava falhando. Ele notou que a quinta corda não ajustava, mas dava para fazer o show mesmo assim. Às 22 horas, com o Feitiço superlotado, e, meio tímido, Serjão subiu ao palco e tocou o repertório completo do filme Terra em Transe. Também emendou seus outros sucessos e contou histórias sobre sua carreira musical e no cinema. Com o público empolgadíssimo, já no final, Sérgio Ricardo em ‘transe’, cantou ‘…te entrega Corisco, eu não me entrego não…’, foi aplaudido de pé pelo público por mais de dez minutos”, lembra Robson Silva emocionado.
A cara de Brasília
Mas o Feitiço não foi apenas palco para estrelas consagradas da MPB. A casa virou celeiro de novos artistas, que viram nela o espaço certo para fazer a transição entre o amador e o profissional. É o caso do grupo de música latino-americana Merceditas, que lançou seu primeiro disco no Feitiço, como lembra Eleni Fagundes, produtora musical do grupo.
“O Feitiço, apesar de Mineiro, tinha a cara de Brasília, um espaço plural, com cardápio gastronômico e cultural fruto da sensibilidade do Jorge Ferreira. Foi a casa que primeiro reconheceu nosso trabalho musical, nos deu oportunidade e onde lançamos nosso primeiro disco ‘Razón de Vivir’. Faz parte da história de Brasília, da nossa história e da de muitos artistas”, disse.
A servidora pública aposentada Sonia Palhares, carioca da gema, e que frequentou o Feitiço por décadas, explica porque o anunciado fim do espaço dói tanto na alma dos brasilienses.
“O meu tempo de moradia em Brasília se confunde com o tempo de existência do Feitiço Mineiro. Seguramente foi o lugar que eu mais frequentei nesses 32 anos em que eu moro na cidade. Sinto como se fosse a segunda morte do Jorge Ferreira. Tristeza profunda”, disse Sonia.
O silêncio dos fascistas
A musicista Gabriela Tunes escreveu um longo texto nas redes sociais lamentando o fim do Feitiço Mineiro e lembrando a perseguição que o espaço sofreu dos vizinhos que confundem música com barulho.
“Era um patrimônio histórico e cultural da cidade, um lugar pleno de afetos, pois suas paredes guardavam lembranças de momentos musicais sublimes. Infelizmente, sucumbiu. Não apenas à pandemia de coronavírus, mas ao fascismo. A roda de choro da quarta-feira teve que ficar sem a flauta porque alguém dizia que o som incomodava. A lei do silêncio confirmou o ‘barulho’ acima de 55 dB. Algum tempo depois de eliminada a flauta, a própria roda foi suspensa, porque acontecia na varanda (das 19h às 22h), sem isolamento acústico, e fazia ‘barulho’. O Feitiço acumulava multas altíssimas por descumprimento da lei do silêncio. Os fascistas detestavam o Feitiço, acionavam o poder público e este, em vez de proteger quem produzia cultura, o tratava como poluidor sonoro, como criminoso ambiental. Juntando as multas da lei do silêncio à crise do coronavírus, seria impossível mesmo se manter”, lembra a flautista.
No entanto, a resistência a quem quer calar as vozes dissonantes começa a emergir. Frequentadores do Feitiço e fãs dos artistas que se apresentaram por lá nesses 32 anos usam as mídias sociais e a imprensa para pedir que o espaço continue a existir. Como lembrou Denise Pereira, atual dona do Feitiço, para uma cidade que tem apenas sessenta anos, é muito triste perder seus poucos lugares que contam a sua história.
O Feitiço Mineiro, ou o que ele construiu em sua trajetória, promete resistir.
(*) Roberto Seabra – Jornalista