MP elimina principal competência da agência, que é a de garantir a segurança e a eficácia das pesquisas clínicas, para atender a interesses privados de empresários e deputados
O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem até o dia 1º de março para sancionar, com vetos ou não, a Medida Provisória (MP) 1.003/2020, aprovada no Congresso Nacional e enviada ao Palácio do Planalto para sanção como projeto de lei de conversão. Sendo MP ou projeto de conversão, o fato é que, na opinião de cientistas, a proposta desmonta, definitivamente, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), reguladora que já vem sendo desmantelada desde o início do governo Bolsonaro.
Até o diretor-presidente da Anvisa, Antônio Barra Torres, aliado de Jair Bolsonaro, vê, no projeto, a transformação da agência em um mero carimbador de pesquisas analisadas por nove agências sanitárias estrangeiras. Segundo entendimento da diretoria colegiada da própria agência, dessa vez o Congresso Nacional foi longe demais, a ponto de Barra Torres ir ao Palácio do Planalto pedir o veto do artigo 5º.
Esse artigo fixa o prazo de 5 dias para a agência autorizar o uso emergencial de vacinas contra a Covid-19 desde que tenham sido aprovadas por nove autoridades sanitárias estrangeiras. O artigo não só complementa o esvaziamento da Anvisa, que já ocorre desde 2019, mas sepulta de uma vez por todas a agência ao retirar dela suas principais competências e amplia ainda mais a ruptura com a Constituição Federal.
A situação remete ao ditado popular “a ocasião faz o ladrão”. Significa dizer que, num cenário de caos sanitário por causa da não gestão deliberada da pandemia do novo coronavírus no Brasil, o Congresso Nacional se aproveita da ocasião, que tinha o objetivo de autorizar o Brasil a integrar o projeto Covax Facility, uma aliança internacional que pretende garantir o acesso dos países a uma vacina contra a Covid-19, para aprovar, de forma camuflada, uma série de modificações que trará problemas sérios para a população e afetar[a em cheio a soberania científica do Brasil.
A Anvisa planeja não certificar vacinas caso o artigo 5º continue na lei. No entendimento de Geraldo Lucchese, doutor em Saúde Pública e membro da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), o projeto de lei de conversão é mais uma das dezenas de ataques à pesquisa científica brasileira. “O Congresso aprovou uma lei que faz com que a Anvisa seja obrigada a aprovar o uso emergencial de vacinas autorizadas por nove agências de outros países. Isso faz com que a Anvisa se transforme, basicamente, num órgão burocrático. Ela não precisa avaliar nada, o dossiê, os juntados da pesquisa, a forma como foi conduzida e, simplesmente, se essas vacinas estiverem autorizadas por aquelas nove agências, a Anvisa tem de dar o seu carimbo e permitir o uso no Brasil”, denuncia.
A vacina é boa, mas o lobby pode prejudicá-la
O projeto de conversão da medida provisória também carrega em seu escopo um problema ainda mais grave: a troca de favores políticos com empresários, ou seja, a velha política do toma-lá-dá-cá que o centrão faz há décadas, no Brasil, envolvendo instituições e dinheiro públicos. “O projeto de transformação da MP em lei, que é pior do que a MP, porque ampliou o leque de agências que a Anvisa terá de obedecer, parece ter o nítido objetivo de beneficiar a União Química, que é uma empresa brasileira, uma empresa boa, mas que importar e depois produzir aqui a vacina russa Sputnik V”, denuncia o pesquisador.
Na avaliação de Geraldo Lucchese, independentemente do uso político do assunto no Brasil, a Sputnik V parece ser uma vacina boa, segundo as últimas publicações, “mas a União Química nunca produziu uma vacina no Brasil e isso faz com que também tenhamos de estar alertas porque qualquer vacilo em todo o processo produtivo e nas boas práticas da fabricação pode resultar numa vacina falha e que põe em risco a segurança ou a eficácia da vacina no Brasil”, afirma.
Ele revela o grande lobby da União Química em defesa desse projeto de lei de conversão que afeta a Anvisa. “Para se ter uma ideia, o diretor internacional dessa empresa é Rogério Rosso, ex-deputado federal do PSD por Brasília e ex-presidente da Comissão de Impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Rosso foi governador interino do Distrito Federal quando a chapa do ex-governador José Roberto Arruda foi cassada e ficou alguns meses de governador, quando também não fez nada a não ser beneficiar lobistas que vivem de serviços prestados ao Governo do Distrito Federal de forma quase sempre não muito transparente”, critica.
No jogo do lobby no Congresso Nacional pelos interesses da caloura União Química, Rosso é secundado pelo deputado federal Ricardo Barros (PP-PR), outro parlamentar muito conhecido, que já foi Ministro da Saúde. Barros é o outro lobista que, basicamente, conduziu esse projeto de conversão para contemplar a vacina Sputnik V ser importada ou produzida pela União Química no Brasil.
“Tudo isso nos acende uma luz de alerta e nos faz ter uma atitude de defesa das competências da Anvisa, que ela tem por lei e pela sua própria natureza. Não tem sentido uma agência reguladora existir se ela, meramente, tem de carimbar o que é feito em outras nove agências de outros nove países”, pondera Lucchese. A lei é tão absurda que aborreceu o próprio Barra Torres, aliado de Bolsonaro, que não concorda com o resultado. “Mesmo eles não se entendem internamente. A questão é o centrão, que é o novo comandante do governo no Poder Legislativo. O centrão é sinônimo de lobby para interesses particulares”, comenta.
MP da Anvisa é ruim para o Brasil
O projeto de lei de conversão é nocivo, mas o artigo 5º, que elimina a razão de ser da Anvisa, é muito ruim para o Brasil. Geraldo Lucchese explica que se trata de algo muito ruim porque, primeiramente, retira da Anvisa a sua competência legal de analisar todos as pesquisas clínicas feitas no País ou em outros países e verificar se a pesquisa foi bem-feita e se os seus resultados de segurança e eficácia satisfazem os requisitos e todos os protocolos para esse tipo de produto, como a vacina.
“O projeto de lei de conversão transforma a nossa agência em um órgão meramente burocrático, chancelador do que é feito em outros países. Isso tem um efeito negativo porque esvazia o poder técnico da agência. Ela não precisando mais fazer isso, não precisa mais qualificar pessoas, não precisa mais ter um padrão de recursos humanos qualificados que faça seu trabalho no mesmo nível das principais agências reguladoras existentes no mundo. Isso é um completo incentivo para que a agência se transforme num órgão carimbador”, denuncia o pesquisador.
Ele explica que esvazia a Anvisa porque toda a expertise exigida para analisar um protocolo de pesquisa, para analisar se a pesquisa foi bem-feita, para fazer as centenas de cálculos e verificações de resultados clínicos não obtidos nas pesquisas clínicas será eliminada. “Todo esse processo de certificação de um medicamento ou de uma vacina precisa de expertise, de gente qualificada. Isso, simplesmente deixaria, gradativamente, de ter no Brasil”, ressalta.
Lucchese alerta sobre o risco sanitário que decorre desse projeto. “O risco sanitário sempre agrava mais porque é uma análise a menos que se faz das vacinas, das pesquisas clínicas que autorizariam o uso emergencial. Sabe-se que as vacinas estão sendo pesquisadas num ritmo muito acelerado, fast track, que eles chamam, então, tudo aquilo que era para ser feito e analisado em 3, 4 anos, às vezes, mais, está sendo feito em apenas 1 ano”.
O doutor em saúde pública informa que isso faz com que seja mais necessário ainda a atenção na avaliação dos resultados dessas pesquisas e tem características. “Cada país tem suas características, que seja pelo lado social, ou seja, pessoas nutridas, pessoas com menor poder imunológico e de defesa, enfim, cada país tem suas características que têm de ser levadas em conta na hora de fazer análises desses resultados das pesquisas clínicas”.
Ele destaca ainda o fato de a MP levar o Brasil a perder soberania, em ser incapaz de avaliar pesquisas, que seja o protocolo da pesquisa feita tipo planejamento quer seja os próprios resultados. “Isso traz um risco a mais porque muitas dessas agências dos nove países indicados pela lei não têm o padrão que tem a Anvisa, por exemplo”, finaliza.