Até os bolsonaristas se surpreenderam com a divulgação do telefonema em que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) suplica ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, ter acesso à grande quantidade de vacinas Sputnik V contra a Covid-19. A surpresa, certamente, deve-se ao primário discurso de Bolsonaro contra comunistas e a Rússia, e, também, porque ele mesmo hostilizou o uso de vacinas, que, agora, debilitado, refém do Centrão e em queda de popularidade, esforça-se por conseguir junto aos russos, após o Brasil superar a marca macabra de 358 mil mortos.
O experimentado presidente Putin, ciente das dificuldades em que se move o presidente brasileiro, seja junto ao Congresso Nacional ou ao Judiciário, aproveitou o telefonema para exercer sua visão geopolítica, lembrando a Bolsonaro que a Rússia poderia ampliar a compra de carnes do Brasil, e, também, pode vender equipamentos bélicos que as Forças Armadas Brasileiras compraram durante os governos Lula-Dilma, dentre os quais, helicópteros para a patrulha da Amazônia, baterias antiaéreas e lançadores portáteis de foguetes.
Sabe, o presidente russo, que os EUA têm obrigado o Brasil a engolir sucatas militares, ao mesmo tempo em que, analisados os discursos dos presidentes dos países capitalistas centrais, nota-se grande interesse destes em ver a soberania brasileira sobre a Amazônia relativizada.
O recado russo é claro: posso vender vacinas Sputnik V, mas também quero comprar carnes e vender equipamentos bélicos, sempre lembrando ao brasileiro que Brasil e a Rússia são parceiros no BRICS, uma relação que incomoda, especialmente, os EUA. Sem conseguir vacinas junto aos EUA (apesar dos excedentes estocados lá), e sem grandes oportunidades para ampliar mercados para produtos brasileiros, o presidente brasileiro é forçado a abandonar seu discurso anti-russo e anti-chinês, podendo ser obrigado a praticar o que, no passado, durante os governos militares, foi uma diplomacia taxada de “pragmatismo responsável”. A visita de delegação da Agência Nacional de Vigilância Santiária (Anvisa) a Moscou poderá dimensionar se haverá ou não o início de uma nova fase da diplomacia brasileira rumo à Eurasia.
Dois dias depois do telefonema Bolsonaro-Putin, o ministro de Relações Exteriores da China, Wang Yi, também telefonou ao novo chanceler brasileiro, Carlos Alberto França Franco para afirmar que o gigante asiático está disposto a promover uma “parceria estratégica” com o Brasil. A julgar pelo fato de que a China já é o maior parceiro comercial do gigante sul-americano, a oferta chinesa ao governo Bolsonaro – ignorando primitivas agressões verbais vomitadas pelo ex-chanceler Ernesto Araújo contra o povo chinês – deve ser entendida como uma proposta de fôlego, haja vista a viagem que o presidente argentino Alberto Fernandez está empreendendo a Pequim em breve para firmar acordos para incluir a Argentina na Nova Rota da Seda, o que significa que empreendimentos industriais e ferroviários serão realizados com investimentos chineses na Pátria de Maradona.
Obviamente, não faltou no telefonema entre os dois chanceleres uma ampla atenção ao tema das vacinas, tendo em conta que 80 por cento das vacinas já aplicadas nos braços de cidadãos brasileiros são produzidas a partir de insumos da China, que , além de ser o país mais populoso do mundo e registrar um número de mortes em torno de 5 mil mortos, já exportou 115 milhões de doses do medicamento, e, ao mesmo tempo, conseguiu controlar, internamente, com elevado grau de disciplina social, os efeitos da pandemia, muito embora não tenha conseguido vacinar nem sequer 30 por cento de sua gigantesca população. Sem dúvida, um exemplo para a história da civilização.
Nos dois casos, telefonemas estratégicos para Rússia e China envolvendo temas do interesse do Brasil, país com significativo grau de dependência tecnológica, são o resultado de políticas de desindustrialização e de prioridade ao receituário neoliberal. O Brasil depende de apoio externo para vacinar seu povo. Este é o Brasil do neoliberalismo, um país petroleiro, mas que um quinto de sua população é obrigada a cozinhar a lenha!
(*) Beto Almeida é jornalista, diretor da Telesur e TV Comunitária de Brasília, conselheiro editorial do Jornal Brasil Popular