Logo no início da pandemia, no ano passado, o Supremo adotou uma decisão que hoje só podemos considerar histórica, ao afirmar, contrariando a pretensão de Bolsonaro, portanto do Poder Executivo federal, que os Estados e municípios têm competência concorrente com a da União para tomar medidas contra a Covid-19.
Recentemente o Supremo impôs ao Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, e portanto ao Poder Legislativo federal, instalar a CPI da Covid-19 reclamada, de acordo com a Constituição, por mais de um terço dos senadores.
Nesta quinta-feira, corrigindo a conduta da primeira instância do Poder Judiciário federal, de sua segunda instância, representada pelo TRF4, o Tribunal Regional Federal de Porto Alegre, e até do Superior Tribunal de Justiça e, pelo menos no sentido político, dele próprio, o Supremo confirmou por larga maioria de 8 a 2 votos a anulação das sentenças que mantiveram o ex-Presidente Lula preso por 580 dias e excluído da eleição presidencial de 2018.
Do ponto de vista estritamente jurídico-processual o Supremo talvez não se tenha corrigido a si próprio, porque, como foi dito no julgamento, só há pouco tempo teve início o processo do qual resultava esse julgamento. Politicamente, porém, o Supremo ignorou a alegação feita desde o início pela defesa de Lula de que a 13ª. Vara Federal Criminal de Curitiba, então ocupada por Sérgio Moro, não era competente para julgar as acusações contra Lula – e, portanto, corrigiu a si mesmo, fez uma autocrítica.
Essas acusações eram uma impostura, uma farsa sinistra preparada pela espetaculosa condução coercitiva imposta a Lula em março de 2016 e consumada por uma sentença que teve de esperar que a acusação forçasse um delator premiado a “salgar” Lula, como ele próprio contou a um interlocutor na prisão. “Salgar”, na linguagem das delações premiadas, significava confirmar em depoimento aquilo que os acusadores queriam ouvir.
Ao adotar uma saída “técnica”, talvez ardilosa, para anular as condenações, o relator Luís Edson Fachin pode ter começado a corrigir a própria biografia e a limpar sua folha corrida de profissional do Direito. Mas o Supremo, ao encampar tal saída, praticou um ato político que abreviou consideravelmente as alternativas estritamente judiciais para que o Poder Judiciário como um todo se livrasse, perante o futuro e a história, do caso Lula.
Dias antes, a 2ª. Turma do Supremo, encarregada dos casos da Lava Jato, decretara por 3 votos a 2, a suspeição e o impedimento de Moro no processo do tríplex de Guarujá. Naturalmente tal suspeição se estenderia aos outros processos, ainda que não tivessem a assinatura de Moro na sentença condenatória. Para poupar a Lava Jato é que a liminar de Fachin tentava dar por prejudicado e arquivado o recurso que alegava a suspeição. Isso ficou pendente da próxima sessão do Supremo, mas não reduz a importância dos 8 a 2 de quinta-feira.
O que quer que aconteça daqui para a frente, está diante de nós um tribunal supremo que se pôs à altura de guardar e fazer cumprir a Constituição, corrigindo oportunamente ações e omissões não só dos poderes Executivo e Legislativo, como também do próprio Poder Judiciário e também dele próprio.
A Lava Jato pode ter começado com a melhor das intenções, mas logo se desnaturou, sugestionada pelos instrumentos judiciais e policiais, a cobertura de mídia e o apoio popular que lhe foram oferecidos. Nas abusivas conduções coercitivas, prisões preventivas e delações premiadas que a marcaram desde o começo já estava embutido o que aconteceria depois, inclusive o resultado eleitoral de 2018 e o cotidiano de suas sequelas.
Na quinta-feira o Supremo devolveu a Lula os direitos políticos que a Lava Jato subtraiu não só a ele como ao país inteiro. Mas não estará a seu alcance corrigir da mesma forma as consequências desse resultado eleitoral.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.