Democracia e Estado de direito são impossíveis numa colônia
Nos 521 anos, desde a chegada de Pedro Álvares Cabral, podemos afirmar que o Brasil só teve, por período inferior a 50 anos, governos interessados no desenvolvimento nacional, na economia e cultura brasileiras, na educação e na valorização e dignidade do trabalho.
Este pequeno período da nossa história é conhecido como Era Vargas, embora se estenda por mais tempo do que o de seu governo. Porém é uma justa homenagem a quem sacrificou a própria vida pelo Brasil, pelo ideal nacionalista.
Mas, mesmo nestes 50 anos, tivemos retrocessos e governos com decisões diferentes como os de Juscelino (JK), de Castello Branco, e os curtos períodos de Jânio Quadros e Café Filho.
É indispensável, para boa compreensão histórica e política, especificar, classificar, hierarquizar e definir o que compreendemos por valores do trabalho, construção do Estado Nacional Brasileiro, soberania e cidadania.
Gostaríamos de deixar desde logo bem evidente que ter um Estado Nacional Soberano é condição indispensável para todos demais atributos que garantam o país desenvolvido, defensor dos direitos de seus habitantes, e que seja igualitário e fraterno.
Democracia e Estado de direito são impossíveis numa colônia, seja de um Império seja de uma ideologia, como a neoliberal. Veja-se o presente momento. Há uma democracia formal, com o presidente Bolsonaro eleito conforme as leis em vigor, o mesmo acontecendo com o Legislativo e o Judiciário funcionando plenamente em todas as instâncias, assim também as instituições constitucionalmente definidas.
Mas não há o Estado Nacional Soberano, daí a inexistência do valor do trabalho, pois este está uberizado, reduzido ao falso sofisma do Micro Empreendedor Individual (MEI), nem direitos previdenciários, quase eliminados de acordo com os interesses do rentismo financeiro, e os direitos da população à saúde se reduzem em plena pandemia, levando também aos retrocessos na educação, moradia e transporte.
Democracia sem soberania é mais uma farsa que o neoliberalismo divulga por suas mídias poderosas e hegemônicas. Mas existem, efetivamente, no Brasil, facções políticas que colocam a opção ideológica, tanto à direita quanto à esquerda, acima do país e do interesse da população. A democracia sem soberania, sem estratégia nacional, é o esteio dos oportunistas e politiqueiros, sempre dispostos a sacrificar o bem comum às manobras e conchavos de momento.
Situação similar é analisada pelo antropólogo Otávio Guilherme Velho em “Globalização: Antropologia e Religião” (in Ari Pedro Oro e Carlos Alberto Steil (organizadores), Globalização e Religião, Editora Vozes, Petrópolis, 1999, 2ª edição):
“A percepção da globalização como um evento histórico, suscetível de ser tratado como objeto de investigação, encontra entre os antropólogos grande resistência, seguidamente ocultada para o público externo …….. Essa resistência, aliás, é análoga justamente à apresentada às posições que nos anos 1950-60, retomando tendências anteriores que atravessavam o espectro político-ideológico, acentuavam a centralidade e a inevitabilidade dos processos de desenvolvimento e modernização, tornando desse modo bastante problemáticas, por exemplo, as relações da antropologia com o marxismo.”
No mesmo artigo, Otávio Velho recorda a postura da antropologia, distante dos debates ideológicos, “uma espécie de contradiscurso” que procura “manter-se imune” à globalização, e lembra as “ilusões das outras disciplinas das chamadas ciências sociais que costumam ir em direção contrária, cativas das ideologias da modernidade”.
No final do milênio, havia, numa vertente, a crença no internacionalismo de uma classe média operária ou pós-proletária, principalmente apresentada pelo conselheiro de Tony Blair, Anthony Giddens, e pelo professor português Boaventura de Souza Santos (entre outros leiam-se: B. Souza Santos (organizador) Trabalhar o Mundo – Os Caminhos do Novo Internacionalismo Operário, Civilização Brasileira, RJ, 2005, e A. Giddens, Runaway World: How Globalization is Reshaping Our Lives, Routledge, Abingdon, 2002).
Em outra concepção, o capitalismo informacional do espanhol Manuel Castells, autor da trilogia “A Era da Informação”, publicada pela Blackwell, Oxford, entre 1996 e 1998, com um cenário mediado pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) e como estas interferem nas estruturas sociais.
Mas, no Brasil, a pentacentenária estrutura arcaica da organização nacional não conseguiu manter nem os poucos avanços da Era Vargas, no embate com a globalização neoliberal.
No clássico estudo de João Fragoso e Manolo Florentino, O Arcaísmo como Projeto (Diadorim, RJ, 1993), encontramos a seguinte informação: “Entre 1960 e 1988, a porcentagem de indivíduos abaixo da linha de pobreza gravitou ao redor de 40% da população.” E continuam: “Assim, uma comparação entre uma etapa claramente retracionista, como 1960, e o boom do milagre (1970), nos mostra poucas alterações dos altos níveis de incidência da pobreza: se no primeiro ano os indivíduos miseráveis somam 41% da população, dez anos depois situam-se em 39%.”
O que nos demonstram estes dados? O arcaísmo estrutural que vem do Portugal seiscentista no “claro propósito de perpetuar uma economia e sociedade cujos padrões vinculavam-se ao Antigo Regime. Tratava-se, enfim, de reiterar uma estrutura preexistente, que tinha a aristocracia agrária à testa”, conforme Fragoso e Florentino, citados.
Esta situação que o Brasil tentou se libertar com os governos Vargas e na sua continuação com os governos militares de Costa e Silva a Geisel. Mas que na “redemocratização” foi derrotada pela “democracia” financeira.
Estudando a realidade carioca e fluminense, do período 1790–1830, o historiador João L. R. Fragoso (Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro, Ministério da Justiça, Arquivo Nacional, RJ, 1992) demonstra com estatísticas e documentos como uma classe de comerciantes e fazendeiros, vinculados à economia escravista e colonial, perpetuaram a estrutura arcaica da sociedade quinhentista portuguesa.
Escreve Fragoso que esta economia colonial é “um pouco mais complexa que uma plantation escravista”, submetida a conjunturas internacionais, pois ela realiza, pelo poder político, “acumulações endógenas”. Estas se dão quer pelo domínio do abastecimento, quer pelo comércio de escravos, o que leva o historiador a “colocar em dúvida a aplicabilidade da teoria da dependência”. Também certas fraquezas no exclusivismo colonial português, concedendo licenças comerciais a estrangeiros, permitindo comércio intercolonial direto no Atlântico e sem força para reprimir o contrabando.
Como está exemplificada na obra citada de João Fragoso, esta situação da produção para consumo interno, que estudou para o Rio de Janeiro, também se reproduz na Bahia, no Rio Grande do Sul e em Minas Gerais.
Assim se forma uma classe “aristocrática” brasileira que se perpetua nos casamentos e nas heranças e, de algum modo, imita e sofre as mesmas restrições que a portuguesa, até mesmo na submissão ao capital financeiro inglês. Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva (História da Agricultura Brasileira, Brasiliense, SP, s/d) dão especial relevo à face oculta deste trabalho não comercializado “escondida por trás da Casa Grande (por vezes, da senzala), do ouro das Gerais, do café ou outro produto-rei”.
É esta situação que o tenentismo dos anos 1920, desaguando na Revolução de 1930, tentará combater com o nacional trabalhismo, a industrialização com a necessária/indispensável interveniência do Estado, a valorização do trabalho e a educação pública. Tudo desconstruído com e a partir da redemocratização dos anos 1980, sempre sob a direção do capital financeiro.
A modernidade neoliberal, entre nós, nada mais significou que um subterfúgio ideológico para a retomada do projeto arcaísta, com as ditas leis de mercado servindo de subterfúgio para o desmantelamento do patrimônio nacional e da seguridade social, reduzindo a massa popular no Brasil a uma condição semelhante à dos antigos escravos, em pleno regime dito democrático.
Não se pense que estamos defendendo regimes autoritários, mas sem a construção da cidadania, o fim das desigualdades sociais, econômicas e culturais existentes no Brasil, sem garantia da vida e do trabalho, não existe democracia e sim a manutenção desta situação secular de alienação, miséria e ignorância.
(*) Felipe Quintas é doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense.
(**) Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil