As manifestações populares que ocorreram nos dias 29 de maio (29M) e 19 de junho (19J), em defesa da vacina, alimento, auxílio emergencial e pelo “Fora Bolsonaro!”, constituíram um importante passo na tomada das ruas, embora o vírus ainda nos desafie e nos intimide com novas cepas mais letais. Mas, é necessário ir para as ruas diante da tragédia que vivemos, cercando-nos, certamente, dos cuidados que as instituições de saúde recomendam. A grande imprensa, cumprindo o papel que sempre teve, não dá ainda a devida visibilidade ao povo nas ruas. Nos canais alternativos e progressistas, as análises sobre esses acontecimentos começam a ganhar volume. Em alguns artigos, a comparação com Maio de 1968, na França e no mundo, tornou-se inevitável, como referência de inovação e desses momentos de insurgências.
Levantes, rebeliões e contestações fazem parte da história da humanidade. Estão e estarão presentes sempre que as contradições do sistema, que ordena as relações entre opressores e oprimidos, se exacerbarem. Nos anos iniciais da revolução industrial era a massa dos proletários que ia para as ruas protestar contra a exploração desumana que homens, mulheres e crianças já sofriam naquele capitalismo ainda nascente. Hoje a massa que vai às ruas, tem outra composição, embora as razões que as movam, sejam, estruturalmente, as mesmas daqueles tempos.
Essa realidade que vem se repetindo ao longo dos séculos, em todos os cantos do mundo, acentua-se nesse início do século XXI, a partir da crise econômica de 2008: as condições precárias de vida, causadas pela pandemia e pela condução errática do governo atual, atingem amplas camadas da sociedade, não apenas a das trabalhadoras e dos trabalhadores reconhecidos como tal. É desse terreno social que surge o grito veemente das manifestações: “Fora Bolsonaro!”. Ele traduz um dos piores momentos da nossa história com mais de quinhentas mil mortes, pela Covid 19, retirada de direitos, desemprego e subemprego de milhões, devastação sem procedente do meio ambiente e contínua sucessão de medidas que aniquilam a vida do povo e a soberania do país.
As manifestações de massa têm o papel preponderante de acordar a população para a luta que está sendo travada. O movimento é uma ruptura em relação às iniciativas tomadas anteriormente. Povo na rua tem “a eficácia da ação direta”, do exemplo, da ação “que impacta a imaginação e incita em cada um o desejo de imitar e de ir mais longe…”, apontando para a possibilidade de intervir numa situação concreta, no “aqui e agora”, como diz Claude Lefort, e como mostra a atual situação brasileira.
As informações sobre a realidade atual e as mensagens sobre a necessária e posterior reconstrução do país devem ser insistentemente reiteradas nas palavras de ordem do movimento. São narrativas que organizam a luta, alcançam o imaginário popular de maneira mais decisiva e, ao mesmo tempo, vão esboçando as linhas básicas de um projeto futuro de reconstrução do país, com a participação de todas as brasileiras e brasileiros.
A população que até agora vem ocupando as ruas, diversifica-se e se amplia a cada encontro: além da militância, a classe média começa a aparecer, ao lado dos vacinados, dos “arrependidos”, dos “desconhecidos” e das juventudes. A classe trabalhadora, a da carteira assinada, em sua maioria, tem-se mantido fora do movimento por diferentes motivos: a precarização das condições de trabalho com as reformas neoliberais impostas, tem sido duro golpe para a esmagadora maioria. Uma parcela da população jovem começa a perceber que o futuro que a espera, não é dos melhores, por isso é preciso arregaçar as mangas e buscar caminhos para construir um futuro que lhe seja muito mais digno. Muitos ainda não chegaram, mas virão para as ruas. Quando o jogo estiver definido, muitos recém-chegados ficarão e outros abandonarão o barco. E há aqueles que se manterão em cima do muro, onde sempre estiveram. Essa é a realidade desde que o mundo é mundo. E a vida segue.
É com essa diversidade de seres, pessoas, grupos, pensamentos e propostas, que se trava a luta política para fazer do país em que vivemos um lugar melhor e mais justo para todas e todos. Se o desafio dessa relação complexa é grande, os resultados, não tenhamos dúvidas, serão compensadores.
(*) Maria Ricardina é feminista e militante do Coletivo Reflexão e Prática