Morreu ontem (quarta-feira, 18/8/21), aos 86 anos, Manoel da Conceição Santos, alguém a quem podemos chamar de herói. Não um herói qualquer, mas um herói do povo, alguém que deve ser lembrado nos livros da nossa história. Mas quem foi esse Manoel da Conceição que está sendo tratado aqui com pompa de herói?
Foi um simples trabalhador rural, mais precisamente um agricultor familiar, um camponês, um posseiro natural do Estado do Maranhão, morador das áreas onde o cerrado e a floresta amazônica se encontram em transição naquelas bandas do Maranhão. Nasceu em Caroatá, em 24 de julho de 1935. Em 1955, sua família foi expulsa da pequena posse de terra que plantava e produzia para assegurar a sobrevivência. Com 20 anos de idade, ele e seus pais vão para o município de Bacabal e começam a viver como posseiros em uma nova terra devoluta, mas pouco depois são expulsos outra vez pela ação da grilagem dos latifundiários de então.
A família se desloca para ainda mais longe, para uma área de fronteira agrícola, no município maranhense de Pindaré-Mirim, já mais próximo da floresta amazônica. Manoel da Conceição começa, já em 1960, através da atuação da igreja católica local, a ter aproximação com o Movimento de Educação de Base (MEB), que usava o método de alfabetização de adultos criado pelo grande educador – e patrono da educação no Brasil –, o Professor Paulo Freire. Aí conhece e começa a discutir temas como o sindicalismo, a política e o cooperativismo.
Animado com o que aprendera, Manoel da Conceição monta com seus companheiros 28 escolas para alfabetizar os trabalhadores rurais e seus filhos pelos municípios da região. Aproveita e cria também o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pindaré-Mirim, na esteira do grande movimento de mobilização dos agricultores familiares da época em todo país, que resultou no surgimento dos sindicatos de trabalhadores rurais e das Ligas Camponesas. Até hoje existe a Contag, Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares. É só lembrar que em Santa Maria da Vitória ainda há o STR, surgido mais de 10 anos depois dessa primeira luta de Manoel da Conceição, e que tanto ajudou os posseiros dos nossos municípios na luta contra a grilagem de terra, evitando que muitos agricultores familiares fossem expulsos e que pudessem continuar em suas posses e produzir para suas famílias.
Quando os militares deram o golpe, derrubando o presidente João Goulart, muita gente foi presa, como o próprio Paulo Freire e nosso conterrâneo Clodomir Morais, ou expulsa do país. As Ligas Camponesas foram destruídas e muitos sindicatos de trabalhadores rurais fechados ou submetidos a intervenção por parte da ditadura militar. O sindicato presidido por Manoel da Conceição foi um deles. As forças de repressão chegaram ao município e prenderam mais de 200 trabalhadores rurais, entre eles o nosso herói.
Porém isso não desanimou a turma de Manoel da Conceição. Eles continuaram na luta e pouco tempo depois, em 1968, o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Pindaré-Mirim era talvez o maior, mais respeitado e organizado sindicato de trabalhadores rurais de todo Brasil. Claro que para a ditadura dos militares isso não poderia continuar assim. No dia 13 de julho daquele mesmo ano, a polícia invadiu a subsede do sindicato em Anajá, quando um médico contratado pelo sindicato atendia os agricultores necessitados. Na ocasião Manoel da Conceição foi baleado na perna direita e novamente preso. Depois de seis dias na prisão, sem tratamento médico, parte da perna gangrenou e teve que ser amputada.
Na época, o governador do Maranhão era ninguém menos que o futuro presidente José Sarney (que dominou politicamente aquele Estado por muitos anos). Sarney tentou comprar o silêncio de Manoel, que recusou com uma frase que ficou famosa: “minha perna é a minha classe”, a classe social dos trabalhadores. Levado para São Paulo, com apoio do movimento sindical brasileiro, Manoel da Conceição, ganhou uma prótese que o possibilitava a caminhar novamente. E caminhar na luta…
Pôde voltar a sua Pindaré-Mirim, mas antes pôde até ir mais longe: visitou a China por duas vezes. Por tudo isso, Manoel da Conceição se tornou o líder sindical rural mais odiado pela ditadura militar no país. Em 1972, foi novamente preso em Pindaré, dessa vez levado ao Rio de Janeiro, para os porões de tortura da Cenimar, onde, como muitos brasileiros que levantaram suas vozes contra a ditadura militar, foi barbaramente torturado, inclusive com seus órgãos genitais dilacerados. Ele mesmo me contou, anos depois, que simplesmente pregaram seu pênis em um pedaço de madeira, utilizando um prego de tamanho grande e depois puxaram… Por conta dessa perversidade, ele teve que fazer uma intervenção cirúrgica para voltar a urinar normalmente. Essas mesmas sessões de tortura, com grotescos tapas em seus ouvidos, levaram-no também a perder a audição de um deles, tendo que usar aparelho auditivo, como o fazia na época em que o conheci.
Em 1975, ainda preso, foi condenado a 3 anos de prisão e teve que ser solto porque já tinha cumprido o tempo. A igreja católica, através do arcebispo de Fortaleza, Dom Aloísio Lorscheider, então presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), deu guarida ao ex-preso político e o levou a São Paulo, ondo o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e o pastor presbiteriano Jaime Wright providenciaram tratamento médico hospitalar para ele. Mas ainda nesse mesmo ano de 1975 foi novamente preso e torturado, dessa vez já em São Paulo, sendo libertado em 1976, por interferência direta do Papa Paulo VI, que enviou correspondência ao ditador Ernesto Geisel. Na verdade, foi solto com a condição de seguir para o exílio, através do suporte da Anistia Internacional.
Em Portugal participou de um Laboratório Organizacional de Curso, ministrado por Clodomir Morais, criador do Método de Capacitação Massiva amplamente aplicado naquele país europeu.
Só regressou ao país com a Lei da Anistia, que permitiu os exilados retornarem, entre eles, o nosso Clodomir Morais, Paulo Freire, Miguel Arraes, Brizola, Betinho e muitos outros… Voltou e continuou sua luta. Dessa vez foi morar no Recife onde ajudou a fundar junto com Lula, em 1980, o Partido dos Trabalhadores, do qual foi um dos seus primeiros dirigentes e, pouco depois, em 1984, a fundar a CUT, Central Única dos Trabalhadores.
Ainda em 1980 a Editora Vozes publicou “Essa Terra é Nossa: depoimento sobre a vida e as lutas de camponeses no Estado do Maranhão”, de autoria do nosso herói, incontestável liderança dos camponeses maranhenses.
Chegou a ser candidato pelo PT ainda em Pernambuco, depois voltou a morar em Imperatriz no Maranhão, onde novamente foi candidato a senador, recebendo 111 mil votos, o que era expressivo para a época. Nesse tempo todo ajudou a criar várias organizações de trabalhadores rurais, entre as quais se destacam:
O Centro Nacional de Apoio às Populações Tradicionais (CNPT).
A Reserva Extrativista do Ciriaco.
A Rede Frutos do Cerrado em vários municípios do Maranhão.
Diversas cooperativas de pequenos produtores rurais no sul do Maranhão.
A União Nacional de Cooperativas da Agricultura Familiar de Economia Solidária (Unicafes).
A Central de Cooperativas do Maranhão.
O CENTRU-Centro de Educação e Cultura do Trabalhador Rural.
Manoel da Conceição é, portanto, um herói de sua gente, da gente do povo brasileiro, sobretudo dos trabalhadores rurais, dos camponeses, da agricultura familiar. Alguém que deve ser sempre lembrado e homenageado: um dos imprescindíveis, como queria o poeta Bertolt Brecht.
(*) Por Cezar Lisboa é sociólogo, professor licenciado da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb) e assessor do governador da Bahia, Rui Costa (PT).