Proposta é a principal aposta do governo para bancar o Auxílio Brasil, mas especialistas dizem que no texto da PEC não tem nenhuma menção ao programa do governo Bolsonaro. O que tem, segundo eles, é um jabuti denominado “securitização da dívida pública” e um “gato” para contornar o teto de gastos e pôr R$ 90 bi nas mãos de Bolsonaro para campanha eleitoral 2022 com dinheiro público
Com placar mais folgado para o governo Jair Bolsonaro (ex-PSL/União Brasil) do que o do primeiro turno, a Proposta de Emenda à Constituição nº 23/2021 (PEC 23/21) foi aprovada, na noite desta terça-feira (9), no Plenário da Câmara dos Deputados, em segundo turno, por 323 votos a 171, e uma abstenção.
Elaborada pelo ministro da Economia e sua equipe, o banqueiro Paulo Guedes, a PEC aplica o calote nos precatórios ao limitar o valor de despesas anuais com os precatórios, corrige seus valores exclusivamente pela Taxa Selic e muda a forma de calcular o teto de gastos.
Ela é a principal aposta do governo Bolsonaro e seus aliados para viabilizar o programa social Auxílio Brasil — anunciado como sucessor do Bolsa Família. Vale lembrar que 80% dos precatórios são de caráter alimentar, destinados normalmente a aposentados e pensionistas, que estão sendo punidos novamente.
323 deputados aprovaram uma PEC inconstitucional, com mais de 30 violações à Constituição
Na semana passada, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) divulgou uma nota pública apontando 30 violações constitucionais na PEC dos Precatórios. A nota técnica foi divulgada, no sábado (6/11), e a classificou de “flagrantemente inconstitucional” e uma “tentativa de calote repaginada”.
Segundo a OAB, a proposta também viola “a separação dos poderes, o ato jurídico e a coisa julgada” e vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que já declarou inconstitucionais algumas alterações previstas na proposta, como o parcelamento de precatórios e a sua correção monetária por meio da taxa Selic.
No documento, os advogados reforçaram que houve irregularidades na aprovação da PEC, no primeiro turno da votação, na semana passada, que abre espaço de R$ 91,6 bilhões no Orçamento de 2022 para o pagamento do Auxílio Brasil e outros gastos às vésperas da eleição presidencial.
Na sexta-feira (5), a OAB já havia apontado os descumprimentos do regimento interno da casa legislativa durante a votação no texto, indicando que estava estudando ‘possíveis ações legais’ para suspender a mesma.
Em linhas gerais, a proposta adia o pagamento de precatórios (dívidas do governo já reconhecidas pela Justiça) e altera o cálculo do teto de gastos. As duas mudanças abrem um espaço orçamentário de mais de R$ 90 bilhões para o governo Bolsonaro gastar em 2022, ano eleitoral — o que é visto como especialistas como uma forma de “contornar” o teto de gastos.
A estimativa do governo é que a PEC abra um espaço no Orçamento de 2022 de R$ 91,6 bilhões, sendo R$ 44,6 bilhões decorrentes do limite a ser estipulado para o pagamento das dívidas judiciais do governo federal (precatórios); e R$ 47 bilhões gerados pela mudança no fator de correção do teto de gastos, incluída na mesma PEC.
Segundo o ministro da Economia, o dinheiro para o Auxílio Brasil deverá tomar cerca de R$ 50 bilhões dessa folga orçamentária; ajuste dos benefícios vinculados ao salário-mínimo; elevação de outras despesas obrigatórias; despesas de vacinação contra a Covid; vinculações do teto aos demais poderes e subtetos.
No entanto, a bancada da esquerda no Congresso Nacional, a própria OAB e várias entidades sociais e sindicais afirmam que não é para isso. Maria Lucia Fattorelli, auditora fiscal aposentada e coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, afirma que, além de não mencionar o temporário Auxílio Brasil, a PEC carrega o “jabuti” da fraude bancária.
“Ela frauda a Constituição Federal, não menciona em seu texto nada sobre o temporário e eleitoreiro Auxílio Brasil, mas traz um jabuti que irá implantar a securitização da dívida pública, essa perversa engenharia financeira, mediante a qual grande parte das receitas estatais não chegará aos cofres públicos, pois será desviada durante o seu percurso pela rede bancária, para o pagamento de dívida ilegal gerada por esse esquema, semelhante a um ‘consignado’”, denuncia.
Fattorelli conta que “durante auditoria feita pelo Parlamento da Grécia, em 2015, passamos a combater as tentativas de legalização desse esquema fraudulento no Brasil. Segundo ela, esse esquema é proibido em quase todos os países.
Corrupção com dinheiro público, “orçamento secreto” e compra de votos
A trajetória da PEC 23 foi eivada de corrupção com dinheiro público. Ela era tida como derrotada, mas, de repente, foi aprovada em primeiro e em segundo turnos num espaço de menos de uma semana passada, com folga de votos em favor do governo, apesar dos pedidos de cancelamento no STF.
No primeiro turno, ela foi aprovada após várias irregularidades, manobras fraudulentas e infrações ao Regimento Interno da Câmara dos Deputados cometidas pelo presidente da Casa Legislativa, deputado Arthur Lira (PP-AL), e pelo desembolso de R$ 1,2 bilhão em dinheiro vivo e público para compra dos deputados que votaram a favor da proposta.
Até deputados do PDT e do PSB, considerados de oposição, e até mesmo do campo da esquerda, entraram no esquema e votaram a favor da proposta. Uma matéria da CNN Brasil mostrou que, só em outubro, o governo Bolsonaro gastou quase R$ 3 bilhões em emendas do relator.
Emendas do relator é um recurso financeiro público destinado a parlamentares e pelo qual não precisam prestar contas. Faz parte desse metódo de compra de votos que ficou conhecido como “orçamento secreto” pela falta de transparência.
Um levantamento da ONG Contas Abertas, que fiscaliza o Orçamento público, indica que, exatamente uma semana antes da aprovação da PEC dos Precatórios em primeiro turno na Câmara, o governo Bolsonaro empenhou R$ 909 milhões apenas em emendas do relator.
Apuração da CNN Brasil indica que, no orçamento de 2021, as emendas parlamentares individuais, entre senadores e deputados federais, custaram R$ 9,6 bilhões. Já as emendas para as bancadas dos partidos foram de R$ 7,3 bilhões. As de comissão foram zeradas. Entretanto, as de relator, que começaram a partir do Orçamento de 2020, custaram R$ 18,5 bilhões.