Juiz de São Francisco do Guaporé criminaliza movimentos sociais e expede seis ordens de prisão e outras 26 de busca e apreensão contra pessoas ligadas à Liga dos Camponeses Pobres; inviolabilidade do material de trabalho de advogados está prevista na Constituição Federal
A advogada Lenir Correia Coelho, defensora da Liga dos Camponeses Pobres (LCP), teve sua casa invadida por policiais civis da 2ª Delegacia de Repressão ao Crime Organizado (Draco) na manhã desta quarta-feira (24), em Ji-Paraná (RO), para o cumprimento de um mandado de busca e apreensão. A ordem foi expedida, na quinta-feira (18), pelo juiz Fábio Batista da Silva, da Vara de São Francisco do Guaporé. Ao todo, ele determinou a prisão preventiva de seis pessoas ligadas ao movimento e a busca e apreensão em endereços de outras 26 pessoas, entre elas a advogada e um vereador de Presidente Médici, Benito Alves da Cruz, o Benito do Estrela (PSDB).
Lenir faz parte da Rede Nacional de Advogados Populares (Renap) e é diretora da Associação Brasileira de Advogados do Povo (Abrapo). Segundo Felipe Nicolau, presidente da Abrapo, os policiais apreenderam o celular, o computador de trabalho da advogada, dinheiro em espécie, materiais de estudo, contratos de honorários e notas promissórias de clientes, muitas sem qualquer relação com a LCP. Ele afirmou que a organização acionou as comissões de prerrogativas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional e da secção regional de Rondônia, mas ainda não obteve qualquer manifestação.
O artigo 133 da Constituição Federal prevê a inviolabilidade do advogado “por seus atos e manifestações no exercício da profissão”. Para o estatuto da advocacia, a proteção ao local de trabalho, “de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins”, serve para resguardar o direito dos clientes à defesa. Além da determinação judicial, as ordens de busca e apreensão contra advogados precisam ser acompanhadas por um representante da OAB.
Juiz estadual trata camponeses como organização criminosa
A Comissão de Prerrogativas da OAB-RO informou que “está acompanhando a operação, que envolve advogada no município de Ji-Paraná, desde as primeiras horas” de hoje. “Em razão da operação ainda encontrar-se em curso, não há elementos suficientes para maiores notícias, fato que será devidamente noticiado quando da conclusão da operação e da recepção das informações por parte da CDP Rondônia e da Procuradoria Jurídica da OAB-RO”, afirma.
Para embasar sua decisão, Silva acusa a LCP de ser uma “organização criminosa destinada à invasão de terras, e ainda lavagem de dinheiro, esbulho possessório e comércio ilegal de armas de fogo”. Ele coloca a advogada como uma das líderes da LCP e diz que o grupo tem atuações organizadas de apoio jurídico, contabilidade, tesouraria, além de organização e segurança dos acampamentos, com a elaboração de “regras e disciplina”.
Advogada de diversos movimentos sociais da região, Lenir já foi assessora jurídica da Comissão Pastoral da Terra e do Núcleo de Assessoria Técnica Popular Dom Antônio Possamai. Ela defendeu sua tese de mestrado em Direito Agrário na Universidade Federal de Goiás em setembro do ano passado e é membro-fundadora do Instituto de Pesquisa em Direito e Movimentos Sociais (IPDMs). Atua também na assessoria jurídica a mulheres em situação de risco social em acampamentos e assentamentos rurais. Lenir é alvo de diversas ameaças, inclusive de morte, há pelo menos cinco anos.
Terra em disputa é considerada grilada pela Justiça Federal
Segundo Nicolau, a ação criminal está relacionada ao Acampamento Enílson Ribeiro, que ocupa a Fazenda Bom Futuro, em Seringueiras. O pecuarista Augusto Nascimento Tulha, médico reformado do Exército, se apresenta como proprietário da área, de mais de 9 mil hectares. Ele, no entanto, não conseguiu regularizar a área, apontada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) como grilada. Tulha – que mora em Santos, no litoral paulista – ainda tentou fracionar a propriedade em diversas fazendas para tentar regularizar todas elas, mas sem sucesso. A Justiça Federal confirmou que a terra era grilada.
Mesmo com a vitória cível na Justiça Federal, os camponeses têm acumulado derrotas na Justiça estadual, especialmente na esfera criminal. Diversos camponeses foram presos pela polícia ao longo dos últimos cinco anos, sempre sob a acusação de serem líderes de invasões de terras. Agora, as ações atingem mais de vinte pessoas, inclusive a advogada que defende a LCP.
De Olho nos Ruralistas tem mostrado nas últimas semanas uma série de ações da Polícia Militar e do Judiciário de Rondônia para criminalizar a liga e justificar as violências cometidas contra seus integrantes. Para isso, a administração estadual conta com o apoio do governo Jair Bolsonaro, que enviou, em maio último, a Força Nacional de Segurança Pública (FNSP) para atuar contra os movimentos de reivindicação de terra no estado. Se não houver uma nova renovação de prazo, a FNSP permanece em Rondônia até o fim deste mês.
Série mostra violência policial contra Liga dos Camponeses
A primeira reportagem da série foi publicada no dia 05: “Fome, água imprópria, crianças coagidas e assassinatos: as armas da PM“. Ela mostra como foi a desocupação e o retorno dos camponeses aos Acampamentos Tiago dos Santos e Ademar Ferreira — em Nova Mutum Paraná, um distrito de Porto Velho, o maior município de Rondônia.
Em seguida o observatório publicou a seguinte reportagem: “Bolsonaro inventou “guerrilha terrorista” em RO para justificar ação da Força Nacional, diz procurador“. Ela conta como foi a articulação entre o governador Marcos Rocha (PSL) e integrantes e aliados do governo federal, como o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), o secretário especial de Assuntos Fundiários, Luiz Antônio Nabhan Garcia, e o ministro da Justiça, Anderson Torres, para justificar a guerra aos camponeses.
Novo texto foi ao ar nesta terça-feira: “Governo de Rondônia confirma presença de atirador em helicóptero, contra camponeses“. Ele mostra que a Secretaria de Segurança Pública recebeu denúncias de violações aos direitos humanos nas ações em Nova Mutum Paraná. Pelo menos cinco camponeses ligados à LCP foram assassinados pela PM na região desde agosto. Segundo testemunhas, as vítimas foram alvejadas por atiradores que estavam em helicópteros.
(*) Por Leonardo Fuhrman, repórter do De Olho nos Ruralistas
Foto principal (OAB): sede da Ordem dos Advogados do Brasil em Porto Velho
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