Os números que escancaram a violência contra a mulher no Brasil são tão terríveis que o mais sensato, se não fosse ainda a pandemia, que neste dia 8 de Março milhões de pessoas voltassem às ruas, numa espécie de Carnaval às avessas, para dizer: chega!
Outros países já disseram “chega!” por bem menos. Cito apenas a Argentina, que em 2019 foi para as ruas no movimento: “Basta de femicidios: #niunamenosargentina – Que las ninãs no crezcan pensando que las pueden matar”. Não foi apenas uma passeata. O movimento influenciou a eleição presidencial e está mudando a política do país.
Mas já que falamos de números, aqui vão alguns. Segundo o site G1, o Brasil teve um aumento de 7,3% nos casos de feminicídio em 2019 em comparação com 2018. “São 1.314 mulheres mortas pelo fato de serem mulheres – uma a cada 7 horas, em média”, diz a reportagem. Na Argentina, onde o feminicídio está na ordem do dia, a taxa é bem menor, mas ainda assim elas já se rebelaram.
Então no caso do Brasil talvez seja preciso dizer mais, já que “apenas” os crimes e seus números não conseguem mudar a realidade. O que fazer?
Ler literatura sobre a violência contra a mulher pode ser um dos caminhos. Um dos principais motores do Movimento Abolicionista do século XIX no Brasil foi a poesia de Castro Alves e os textos de José do Patrocínio e Joaquim Nabuco. A literatura tem uma importância enorme na mudança das mentalidades. Não por acaso as argentinas e argentinos leem muito.
Li, ou melhor devorei, o romance “Mulheres empilhadas”, da escritora paulista Patrícia Melo. Numa linguagem ao mesmo tempo dura e poética, como explica a orelha do livro, a premiada escritora usou todas as suas ferramentas para escrever uma obra que denuncia a violência sem abrir mão do compromisso com a literatura. É livro que, apesar do conteúdo triste e pesado, lê-se com prazer. Não aquele prazer romântico que nos faz sonhar mundos melhores e cenas idílicas. É o prazer da leitura, de ver histórias terríveis contadas de forma atraente, e que em seguida nos levam à indignação.
Todo homem deveria ler “Mulheres empilhadas”. Jovens, adultos, velhos. Todos. O livro deveria ser leitura obrigatória para quem atrasa a pensão alimentícia ou de alguma forma já ameaçou uma mulher. Juízes e juízas, policiais e membros do Ministério Público, por favor, leiam esse livro.
A literatura tem essa capacidade incrível de transformar as pessoas. Muitos ex-presidiários deixaram para trás a vida bandida por influência do que leram nas prisões.
“Mulheres empilhadas” conta a história de uma jovem advogada que é enviada ao Acre para acompanhar um mutirão de julgamentos de casos de mulheres assassinadas. Dentre os feminicídios, um se destaca pela brutalidade: o de uma adolescente indígena, estuprada e assassinada por jovens da elite acreana.
A partir daí a história se desenvolve de forma vertiginosa, misturando romance policial com relatos pessoais da protagonista, que precisa acertar as contas com o passado recente e remoto, ambos marcados pela violência.
O livro também incursiona pelo sobrenatural. A protagonista conhece uma xamã e passa a vivenciar experiências místicas com outras mulheres indígenas que a ajudam a entender sua própria história e a enfrentar a violência sofrida e testemunhada.
Patrícia Melo não pega leve. O livro bate pesado nos homens de um modo geral e, em particular, no que ela chama de protomacho:
“Vocês, homens, tomam porre e nos matam. Querem foder e nos matam. Estão furiosos e nos matam. Querem diversão e nos matam. Descobrem nossos amantes e nos matam. São abandonados e nos matam. Arranjam uma amante e nos matam. São humilhados e nos matam. Voltam do trabalho cansados e nos matam”.
Ler “Mulheres empilhadas” no Dia 8 de Março seria uma boa forma de começar a mudar esse quadro de violência epidêmica.
(*) Por Roberto Seabra, jornalista, escritor e documentarista.
*Texto publicado originalmente em 2020 no blog Leitores sem fim.
Foto da capa/legenda: foto da capa do livro Mulheres empilhadas.
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