Os últimos acontecimentos ocorridos em Colômbia relacionados com o processo de paz que o governo de Gustavo Petro intenta promover ratificam o sentido das ideias expedidas sobre o tema num artigo de 5 de maio intitulado “A paz total frente à história” [“La paz total frente a la historia”].
Ali dizíamos que, apesar das boas intenções do governo, do acertado enfoque humanitário dos atores do conflito [“povo armado e com diferentes uniformes enfrentado por interesses alheios”], não se observava uma “análise teórica profunda”, e portanto não havia uma séria caracterização dos atuais grupos armados e, menos [ainda], uma estratégia coerente.
Os recentes acontecimentos ligados a este asunto são os seguintes:
- Mudança inoportuna do Alto Comissionado de Paz, onde Danilo Rueda foi substituído por Oty Patiño, quem até o momento exercia como Chefe da Delegação do Governo nos Diálogos de Paz com o ELN.
- Dificuldades para iniciar o 5º ciclo de negociações entre o governo e o ELN [que já começou] ou por efeito do “midiático sequestro” do pai do futebolista Luis Díaz, e a subsequente “questiúncula” ao redor do tema do sequestro como instrumento de financiamento da guerrilha.
- Encontros e desencontros entre o governo e o chamado “Estado-Maior Central” [dissidência das FARC liderada por Iván Lozada, codinome “Iván Mordisco”], o que trouxe como consequência mudanças na chefatura da comissão negociadora do EMC. Assume Leopoldo Durán, quem de entrada afirma que “não confia no governo”.
- Se interromperam os encontros e diálogos com o “Clã do Golfo” e as “Autodefesas Conquistadoras da Serra Nevada”, com as quais se tinha iniciado contatos e conversações para avançar rumo a um processo de paz [“submissão”]. Ademais, as aproximações com a “Nueva Marquetalia” [Iván Márquez] não mostram progresso.
- Se agudizaram os enfrentamentos entre os diversos grupos armados pelo controle do território gerando sofrimento e deslocamento social em diversos lugares; se incrementa o sequestro e a extorsão em diversas regiões e são denunciadas numerosas violações dos cessar-fogos acordados. Existe uma guerra de cifras entre diferentes entidades, porém a percepção geral é de que o conflito armado cresceu nos últimos meses.
A acima exposto parece dar razão a diversos analistas que falaram de “improvisação” e de que o governo “abarca muito e aperta pouco”. E o grave é que tal comportamento se repete em outros temas, especialmente com o ocorrido com as chamadas “reformas sociais”.
Não obstante, sabíamos o difícil que seria o assunto. A forma como se pactuou a desmobilização das FARC com Santos levou a que os combatentes de base tivessem que abandonar os territórios que, mais ou menos, controlavam, e assim se criaram as condições para que aparecessem todo tipo de “substituições” ou “substitutos” que ocuparam o vazio deixado. É claro que essas zonas e essas economias “ilegais” necessitavam de “polícias rurais” para manter ordem e estabilidade sem importar a origem ou o discurso de tal ou qual grupo.
E, pior ainda, o assunto se complicou quando o governo de Duque não só tratou de desmantelar o pouco que se havia avançado com Santos em substituição de cultivos de uso ilícito e impulsionamento de projetos produtivos senão que permitiu todo tipo de pequenas corrupções e abusos no manejo dos recursos destinados para continuar com esse processo. Foi uma verdadeira sabotagem.
O “novo” que foi aparecendo
Mais além do debate ético, político e jurídico sobre o caráter dos grupos armados que se mantiveram e se fortaleceram após a firma do processo de paz com as FARC [2016] e das incoerências e sabotagem na implementação do Acordo Final, o interessante é o que apareceu frente ao país por ocasião das ações que impulsionaram os referidos grupos [se chamem guerrilhas, dissidências e/ou clãs], em coordenação com moradores de diversas regiões durante os últimos tempos.
Uma das primeiras ações desse tipo durante o governo de Gustavo Petro foi a “paralisação mineira” do Baixo Cauca antioquenho e do sul de Córdoba liderado e “pressionado” pelo “Clã do Golfo” ou Autodefesas Gaitanistas de Colômbia [AGC], que paralisou a referida região durante o mês de março do presente ano [2023l que teve como principal objetivo o de rechaçar as ações realizadas pelo governo contra a mineração ilegal. Na dita paralisação participaram mineiros artesanais da região e outros setores sociais que dependem em grande medida da referida economia.
Porém, ao longo do ano ocorreram ações similares e muito mais organizadas em numerosas regiões do país, onde “guardas campesinas” ou outras expressões sociais “cercaram” o Exército e a Polícia, e os obrigaram a sair de territórios controlados principalmente por “frentes” ou “colunas” que se agruparam ao redor do Estado-Maior Central [EMC] como a “Carlos Patiño”, “Jaime Martínez” e “Dagoberto Ramos”.
Entre outras ações desse tipo se destacam as realizadas nas instalações da petroleira Emerald Energy, situada na inspeção de Los Pozos, em San Vicente del Caguán, Caquetá, onde as comunidades “retêm” 78 soldados; na vereda San Jorge de San José del Guaviare expulsam a 18 militares; no corregimento de El Plateado, município de Argelia, Cauca, obrigam o Exército a sair do perímetro urbano; no corregimento de Timba, município de Buenos Aires, Cauca, e em outras zonas de Nariño e Cauca, as comunidades campesinas se enfrentam com as forças militares que realizavam diferentes operações contra o narcotráfico e a mineração ilegal.
Ademais, as forças do EMC realizaram na região do Catatumbo, Nariño, Meta e outras zonas afastadas atos públicos de inauguração de obras civis [rodovias, pontes etc] construídas com as comunidades locais, fazendo gala e certa ostentação de sua força e controle do território, assim como da aceitação da população que se vê beneficiada com as ditas iniciativas que contrastam com a nula presença do Estado que durante décadas só marca presença por meio do Exército ou dos Registros no dia de eleições.
Não se trata de processos organizativos da categoria dos que realiza o Exército Zapatista de Libertação Nacional em Chiapas, ao sul do México, que se caracterizam pela organização e autodeterminação das comunidades indígenas, dado que em Colômbia as guerrilhas [e a “esquerda armada”] nunca tentaram construir esse tipo de experiências[1]. Sempre foi um obstáculo a concepção “vanguardista”, porquanto o objetivo era a “tomada do poder” [derrocar a oligarquia] e por isso a “resistência campesina” que eles lideravam sempre esteve à espera da insurreição “operário-popular” que se desencadearia algum dia nas cidades. No ocorreu assim.
No entanto, como veremos mais adiante, é um esforço por canalizar os impostos e tributos das economias ilegais [“gramaje”] para –em conjunto com as comunidades- construir uma infraestrutura que é necessária para o processo de capitalização desses recursos por parte da “burguesia emergente” nessas regiões, que é o sujeito social que realmente está à frente do acumulado no ciclo de expansão da fronteira agrícola durante as últimas quatro [4] décadas.
Colonização, expansão da fronteira agrícola e burguesia emergente
O que está ocorrendo é muito importante para o futuro da Colômbia. Nos ciclos anteriores de expansão da fronteira agrícola, que foram resultado de colonizações armadas ou desarmadas protagonizadas por campesinos pobres e colonos, já [seja que] foram executadas de maneira legal ou ilegal, pacífica ou violenta, eram os grandes terras-tenentes quem terminavam se apropriando desses territórios. Assim ocorreu no passado no Valle del Cauca, norte do Cauca, Magdalena Medio, Urabá e outras regiões, e é o que já está ocorrendo atualmente em grande parte da Orinoquía.
Por outro lado, o que sucede nos territórios onde surgiu uma burguesia emergente que conseguiu capitalizar uma porcentagem dos recursos gerados pela economia do narcotráfico e da mineração ilegal [que se complementa com outras práticas como o tráfico de insumos, armas, pessoas, lavagem de ativos etc.] se estão construindo verdadeiros centros de poder econômico que, ainda que sejam muito precários, porque dependem dessas economias “não lícitas”, agora que se propõe e se executa uma política para superar essa situação, as gentes que habitam nessas áreas exigem não só controle territorial [“reservas campesinas”] como também um efetivo reconhecimento de seu sacrifício de longo fôlego que vá mais além de uma que outra obra que o governo realize por pressão social.
Todos sabemos que, uma vez [que] as economias ilegais [“não lícitas”, dixit Petro] sejam expulsas desses territórios [e transferidas para outros], se não se impulsionarem processos consistentes de desenvolvimento vital e integral], com participação plena das comunidades, organização associativa e forte apoio do Estado em todo nível [infraestrutura, crédito barato, tecnologia, serviços complementares etc.], as referidas regiões serão abandonadas por uma grande parte da população trabalhadora e ficarão aqueles que geraram enraizamento e pertencimento ao território porém numa situação calamitosa, dada a marginalidade e a distância dos ditos territórios. E certamente, ante essa eventualidade, será o grande capital [“nacional” ou “estrangeiro”] quem se apoderará desses recursos, incluída a terra, no velho estilo do que fizeram os grandes terras-tenentes no passado.
O que este país e sua sociedade devem reconhecer é a contribuição econômica que essas economias ilegais deram à Nação. Todos sabemos que esses recursos têm irrigado e fortalecido as economias legais e que grande parte dessa riqueza tem sido canalizada para a construção de moradia em cidades próximas, o fortalecimento do comércio e, especialmente, do sistema bancário. Está demonstrado que a oligarquia financeira “colombiana” desde os anos 70s se alimentou desse fluxo de dólares provenientes do narcotráfico, como reconheceu tacitamente Alfonso López Michelsen quando criou a “ventanilla siniestra” [janela sinistra] do Banco da República em 1978 e se comprovou, igualmente em 2008, quando o presidente Álvaro Uribe, por ordem de Luis Carlos Sarmiento Ângulo, mediante decreto extraordinário, ordenou a intervenção de DMG, Drfe, e demais “captadoras ilegais de dinheiro” para liquidar alguns competidores incômodos para o sistema financeiro “legal”.
Essa resistência a não reconhecer essa contribuição das economias “não lícitas” se reflete nas análises que são feitas da atual desaceleração da economia nacional, que tem sentido os efeitos da situação global [pandemia, guerra Ucrânia-Rússia, outros] como os demais países latino-americanos, porém, também, sofre o impacto da crise que a “cadeia produtiva” do cloridrato de cocaína vive atualmente, por efeito das políticas do governo de Petro. É evidente que, ao não reprimir ao produtor da folha de coca, ao não realizar a erradicação forçosa e ao suspender a fumigação aérea, se gerou uma superprodução de folha de coca com a subsequente queda do preço. Ademais, a eficácia na interdição e na apreensão da droga e dos fluxos de dinheiros provenientes do exterior, criou uma situação inédita no mercado da droga que teve efeitos importantes para a economia colombiana que nenhum analista leva em conta ou se faz vista grossa. É a dupla moral em todo seu esplendor.
Política de paz centrada nas necessidades econômicas e sociais
É por todo o acima exposto que o governo de Petro deveria repensar a forma como se quer avançar com a “Paz Total”. Os grupos armados mirados desde essa perspectiva, na realidade, são só “policiais rurais”, e, ainda que posem de “Revolucionários”, Anticapitalistas”, “Gaitanistas”, “Conquistadores”, na realidade respondem a forças econômicas e a sujeitos sociais como a “burguesia emergente” que busca se legalizar, participar do progresso, obter reconhecimento e investimento em todo nível do Estado e evitar que os grandes terras-tenentes e agora, a grande burguesia financeira termine “expropriando-os” mediante diversas formas que utilizaram no passado.
É claro que a população que habita e vive nesses territórios é absolutamente complexa e tem grande mobilidade social e territorial. Estão os campesinos e colonos arraigados em vários níveis desde há mais de 40 anos, porém ao seu lado estão dezenas de milhares de diaristas agrícolas [“raspachines”], pequenos e médios comerciantes e transportadores, fornecedores de serviços complementares e outra grande quantidade de gente que sobrevive desse tipo de economia “não lícita”, muitos dos quais habitam em centros urbanos próximos. A burguesia emergente surgida desse processo é quem verdadeiramente encabeça suas reivindicações e exigências, porém não pode dar a cara porquanto o Estado e a sociedade sempre os vai estigmatizar. Por isso, deixam esse papel para os chefes dos grupos armados, muitos dos quais sabem que se efetivamente se supera esse tipo de economia, seu papel e “seu poder” poderiam desaparecer com certa facilidade. É um problema a resolver.
Porém também é certo que alguns desses “chefes” que estiveram à frente das bases campesinas das guerrilhas nos tempos mais difíceis e eram críticos dos “grandes comandantes” que se haviam distanciado da realidade e da evolução do conflito, têm muito que dizer e não podem ser desconhecidos, assim como os dirigentes das numerosas organizações campesinas e de produtores de folha de coca, que foram precisando e ajustando suas exigências com uma visão mais elaborada tanto durante a Paralisação Agrária de 2013 como em posteriores lutas.
O importante é voltar a gerar confianças entre o governo e os diversos grupos armados e se centrar em buscar acordos que signifiquem fatos concretos para a população que habita os referidos territórios. Alguns desses chefes deverão “se baixar” dos “velhos sonhos insurrecionais” e ajudar o governo a impulsionar “planos de vida” nas diversas regiões, a partir de verdadeiros processos de participação dos diferentes setores sociais que –em meio às particularidades próprias de cada caso- deverão ajudar a elaborar os programas, projetos e ações para construir as economias lícitas que vão substituindo as economias “não lícitas”, sem que esse passo signifique a expulsão de milhares de pessoas que dependem dessas dinâmicas geradas pela desigualdade e a injustiça social que tem imperado em nosso país.
Se não se faz bem esse trabalho, finalmente, se imporão as forças belicistas que estão na expectativa, tramando desde a obscuridade para obrigar o governo a substituir a política de paz pela de guerra. Alguns setores e pessoas de esquerda que não superaram os “sonhos insurrecionais”, talvez sem querer, contribuem a incrementar a desconfiança em Petro e seu governo, “levando água ao moinho da grande oligarquia”.
Isso deve ser evitado!
[1] Isso explica como em algumas regiões indígenas existe forte resistência à presença desses grupos armados, ainda que eles se têm dado formas de se apoiarem nos setores mais pobres, sem-terra ou com terras inférteis, e têm conseguido permanecer nos ditos territórios apesar da oposição das autoridades ancestrais. Caso do nordeste caucano. [Nota do Autor].
Por Fernando Dorado | 16/12/2023 | Colombia.
Tradução > Joaquim Lisboa Neto
Biblioteca Campesina, Santa Maria, 22dez23
Rebelión publicou este artigo com a permissão do autor mediante uma licença de Creative Commons, respeitando sua liberdade para publicá-lo em outras fontes.REBELIÓN EN COLOM
Acesse no original > https://rebelion.org/las-nuevas-realidades-y-retos-de-la-paz-en-colombia/
(*) Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, é coordenador da Casa da Cultura Antônio Lisboa de Morais/Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.
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