O colapso britânico pós-1ª Guerra Mundial desafia o liberalismo. A ascensão do fascismo e bolchevismo redefine a ordem global. Por Felipe Quintas e Pedro Pinho
O colapso da hegemonia britânica, a partir da 1ª Guerra Mundial, colocou o liberalismo em xeque no mundo todo. O despontar de alternativas iliberais não esperaria a Crise de 1929. Já antes, o bolchevismo, na Rússia, e o fascismo, na Itália, impunham-se como opções de força ante a decomposição da Pax Britannica enquanto ordem internacional. A Quebra da Bolsa de Nova York, em 1929, consagraria as soluções extremistas para reorganizar o tecido econômico e social das nações.
Por toda a parte, acreditava-se que as governanças não deveriam mais se basear na simples conformação à hegemonia capitalista das finanças, mas estabelecer freios, contrapesos e regulações ao poder econômico. Como o parlamentarismo havia sido a forma preferencial de disposição institucional do poder financeiro no século 19, ele foi particularmente visado como raiz política dos males que acometiam o mundo ocidental.
A demanda por governos fortes para recolocar a economia nos trilhos acompanhou, também, a exigência de musculatura para suprimir o parlatório legislativo e os direitos civis característicos do sistema liberal. Enquanto o proletariado, na Europa e nos Estados Unidos da América (EUA), pendia, em linhas gerais, para posições revolucionárias, inspiradas no exemplo russo, a alta burguesia pendia, em linhas gerais, para posições reacionárias, espelhadas no caso italiano.
Contudo, nem todos os movimentos operários, nem todos os grandes empresários estavam dispostos a renunciar às posições conquistadas na estrutura representativa do Parlamento para fortalecer a capacidade governamental de administração econômica e social. A dicotomia fascismo/bolchevismo não atraiu as classes organizadas de alguns países, a exemplo dos escandinavos.
Buscou-se, então, a “terceira via”, que acomodasse todos os interesses de classe nacionais no âmago do Estado ampliado – social, empreendedor, gerencial – que o momento exigia. Mantinha-se o Parlamentarismo, enquanto instância de representação eleitoral, mas, ao mesmo tempo, ele, dentro do seu próprio funcionamento, autorizava o fortalecimento do Poder Executivo na administração dos assuntos econômicos e sociais.
A social-democracia
Na Escandinávia, os artífices políticos desse grande acordo foram os partidos social-democratas. Ao contrário de seus homólogos em outros países, que insistiram em versões ortodoxas do marxismo, os social-democratas escandinavos aceitaram os ensinamentos “heréticos” de Eduard Bernstein e construíram estratégias gradualistas e institucionais para alcançar e reformar o poder.
Para isso, incorporaram elementos variados das próprias tradições nacionais, como certo progressismo social do liberalismo nativo e certo reformismo social do luteranismo local para chegar à síntese nacionalista, que permitisse ganhos distributivos aos trabalhadores sem a abolição da propriedade privada dos meios de produção. Os grandes empresários escandinavos, desejosos de alguma solução de compromisso que não ameaçasse suas posições de poder, como viam acontecer com seus pares na Itália fascista e na Alemanha nazista, pactuaram com os social-democratas.
Nasceu, então, a variante social-democrata do Estado de bem-estar social (Welfare State), que se tornou paradigmática a ponto de se confundir com a própria definição de Estado de bem-estar social, nascido em forma conservadora na Alemanha bismarckiana.
No bem-estar social-democrata, a proteção social universalista contra os riscos de mercado, sem discriminar por categorias de trabalhadores, coexistia com a plena garantia à acumulação privada, cabendo aos empresários locais o controle industrial e ao Estado papel orientador e disciplinador, atuante tão somente nas infraestruturas, indústrias pioneiras e algumas utilidades públicas.
Naturalmente, tal acordo político somente poderia ser mantido em condições de desenvolvimento econômico, ou seja, de crescimento estrutural e não-linear da produção de riquezas, que criasse o jogo de soma positiva, no qual os ganhos dos trabalhadores não significassem perdas para os empresários.
O escopo da governança social-democrata foi, então, ampliado para orientar a economia nacional no sentido do desenvolvimento. Os Estados escandinavos, desde bem antes da 1ª Guerra Mundial, já controlavam os recursos naturais. A partir do entreguerras, quando chegaram ao governo, aprofundaram os controles financeiros através do Banco Central e dispuseram do arcabouço estatal de infraestruturas para criar frentes pioneiras de investimentos nas regiões inóspitas.
Depois da 2ª Guerra Mundial, o equilíbrio social escandinavo, reproduzido, em outras condições, nos EUA do New Deal, de certa maneira se tornou referência para toda a Europa. A necessidade de reconstrução após duas grandes guerras e a severíssima crise econômica faziam necessária maior estatização econômica, mas, derrotado o nazifascismo e descartada a possibilidade de bolchevização, o parlamentarismo se apresentava novamente como arranjo político preferencial, adornado pelas ideologias do pluralismo e da sociedade aberta.
O modelo escandinavo pode ser internacionalizado com a criação do Sistema de Bretton Woods, estabelecido na Conferência em cidade homônima nos EUA, em 1944.
Bretton Woods consagrou, em relação à moeda e às finanças, o que Benjamin Cohen, em Geopolítica do Dinheiro (Editora Unesp, 2014) chamou de “modelo vestfaliano centrado no Estado”, ou seja, a nacionalização do dinheiro e do crédito, cujas fronteiras seriam delimitadas pelos seus respectivos Estados. A moeda e as finanças seriam circunscritas, essencialmente, às fronteiras nacionais e subordinadas aos comandos políticos dos Estados.
Ao regularem o sistema financeiro e o mercado de crédito, eles impuseram constrangimentos ao ganho especulativo e facilitaram o investimento nos marcos da produção e do consumo nacionais, de maneira a criar políticas voltadas à industrialização, ao crescimento econômico, ao pleno emprego e à ampliação dos serviços públicos de previdência e assistência social, atendendo às reivindicações das coalizões empresariais-trabalhistas nacionais.
As governanças nacionais na Europa ocidental do pós-guerra, capitaneadas por partidos social-democratas e democratas-cristãos, foram hábeis em erigir e manter consensos nacionais, nos quais a solidariedade de funções entre governo, empresariado e sindicalismo criou níveis sem precedentes de prosperidade, justo no momento em que a Europa perdia suas antigas colônias e, portanto, o acesso privilegiado a recursos naturais e matérias-primas.
O Plano Marshall explica apenas pequena parte da “Era de Ouro do capitalismo”; muito mais efetiva e duradoura foi a ação pública das nacionalidades em torno da construção de um modelo de harmonia de classes e desenvolvimento nacional.
A conjugação retroalimentante de um continuado crescimento econômico e dos níveis de produção com a ampliação da segurança econômica aos trabalhadores, mediada pela expansão da atividade pública, responsável por coordenar, ainda que muitas vezes de forma incompleta, o equilíbrio social entre os serviços públicos e a produção privada, e entre os setores públicos e privado de modo geral, definiu o que o economista estadunidense John K. Galbraith alcunhou de “sociedade afluente”, característica do pós-guerra. A formação da sociedade de consumo em massa foi correlata à sociedade de bem-estar.
Alijado do liberalismo, que institucionalizava o egoísmo das classes burguesas, o capitalismo, entremeado de regulações sociais, provou ser, naquelas circunstâncias, mais eficiente que o bolchevismo na promoção da justiça social e da melhoria do padrão de vida dos trabalhadores. Ainda que o medo do comunismo incentivasse o capital a aceitar benefícios para o trabalho.
As governanças deste tipo começaram a ser pressionadas a partir da década de 1970, quando a ofensiva mundial das finanças transnacionais reduziu a margem de manobra dos governos nacionais para administrar as finanças em prol do equilíbrio social. A crise de estagflação resultante acendeu o conflito distributivo interno, que intensificou as lutas de classes e arruinou o pacto interclassista que vigorava desde o entreguerras ou o final da II Guerra Mundial.
De um lado, o capital abraçou as teses anti-Estado Social da Escola de Chicago, que afirmava ser a inflação resultante do gasto público, e da Teoria da Escolha Pública, que enxergava os serviços públicos como principal fonte de rentismo (rent-seeking). A fusão dessas duas concepções gerou o neoliberalismo, que propunha, em suma, o retorno ao Estado liberal do século 19, nas condições do capitalismo ainda mais financeirizado.
As organizações trabalhistas, desprovidas, na maioria dos países, de base teórica e programática para se contrapor ao neoliberalismo, resvalaram para a agressividade inócua e impopular das “wildcat strikes”. Foi o caso do Reino Unido pouco antes das eleições de 1979, pavimentando o caminho para a vitória da candidata conservadora Margareth Thatcher, que tirou Friedrich von Hayek da penumbra de Mont Pèlerin e o transformou em ideólogo da “nova era” de governança.
O modelo neoliberal de governança foi bem compreendido por Michel Foucault que, em O Nascimento da Biopolítica (2010[1979], Edições 70), definiu-a como governança de populações, “arte governamental” e “governamentalidade ativa” para produzir a concorrência de mercado e generalizá-la a todos os poros e recônditos do tecido social, inclusive daqueles que não estavam até então sujeitos a essa lógica.
Segundo Foucault, o neoliberalismo se diferenciaria do liberalismo por buscar não exatamente a libertação do âmbito das trocas privadas, mas por instituir a concorrência como princípio de organização política e social. Não apenas o governo deveria produzir a concorrência de mercado, como deveria se organizar segundo seus critérios.
Nas palavras de Foucault, no neoliberalismo, “o governo deve acompanhar de uma ponta a outra a economia de mercado. A economia de mercado nada retira ao governo. Pelo contrário, indica, constitui o índice geral sob o qual se deve estabelecer a regra que vai definir todas as ações governamentais. Deve-se governar para o mercado e não por causa do mercado”.
Desta forma, o capital recobraria seus direitos não apenas sobre a economia, mas sobre toda a sociedade. O desmantelamento e o desvirtuamento das instituições de solidariedade social que edificaram o consenso social-democrata do pós-guerra, inclusive nos países escandinavos, outrora vitrines do bem-estar social, esfacelou e corrompeu as nações.
As novas governanças, eminentemente neoliberais, não abriram mão das políticas sociais, mas as reajustaram segundo padrões financistas, substituindo a inclusão ativa pelo trabalho pela compensação passiva da exclusão econômica. Não se tratava mais de criar as condições para que as pessoas se tornassem independentes como indivíduos e organizadas enquanto cidadãs, mas de subsidiá-las pelo fracasso em condições de concorrência cada vez mais restritivas.
Não se pode dizer que a social-democracia tenha fracassado. Ela proporcionou o melhor momento da história do capitalismo europeu, em termos de cidadania e justiça social, conseguindo fazer, de um continente historicamente avassalado por guerras e fomes e governado por oligarquias imperialistas, reduto de prosperidade e de justiça sociais.
Porém, como ensina Hegel, cada contexto histórico guarda em seu bojo os germes da sua própria destruição. Não foi diferente com a social-democracia. O que dela resta hoje é basicamente o nome, que desperta a pálida e cada vez mais saudosista lembrança dos tempos em que os países europeus ainda eram nações e não feudos financistas.
(*) Por Felipe Maruf Quintas, cientista político; Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.