A coluna Travessia Didivera Revoada, de Joaquim Lisboa Neto, no Jornal Brasil Popular, homenageia os 142 anos de nascimento do Mestre Guarany.
Segundo perfil do Dicionário de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Mestre Guarany foi um escultor autodidata, natural de Santa Maria da Vitória, que viveu mais de 100 anos. Ele entalhava santos, oratórios domésticos, altares e figuras de proa (carrancas).
Passou a assinar F. Guarany nos anos 1960. As suas carrancas tiveram grande repercussão, entre críticos de arte, como objeto artístico, nos anos 1980. Sua trajetória foi escrita por Paulo Pardal.
Este primeiro artigo intitulado “Francisco Biquiba Dy La Fuente Guarany” faz parte de uma série de quatro artigos a serem publicados sequencialmente nesta coluna a partir desta terça-feira (2/4) e é assinado pelo conterrâneo do Mestre Guarany e também falecido Clodomir Santos de Morais, sociólogo e professor universitário, importante personagem e cofundador das Ligas Camponesas, foi sindicalista, jornalista, deputado estadual de Pernambuco e, após o golpe de 1964 foi forçado ao exílio, quando foi conselheiro Regional da OIT para a Reforma Agrária para a América Central. Confira o artigo na íntegra.
Francisco Biquiba Dy La Fuente Guarany
Foi o profissional de inteligência mais multiforme que existiu na Bacia do Rio Corrente. A natureza lhe permitiu viver mais de um século, a fim que desse vencimento à sua inesgotável capacidade inventiva, sempre em dia com a História e com a Cultura de seu povo.
Ele era carpinteiro, escultor, pintor, pedreiro, marceneiro e o único vidraceiro do lugar. Como juiz de paz, realizava os casamentos, desde as distantes quadras em que ainda havia gentes que insistiam no casamento religioso, o do padre, e no de São João, por achar que o casamento civil era uma “Invenção da República”, o “Mal do Século”, a ‘Invenção do cão e da Maçonaria “, e que era o mesmo que amancebar”.
Durante muitos anos, todos os dias, Mestre Guarany ia verificar o nível da precipitação pluviométrica e logo entregar a Seu Ribeiro, ou a Seu Miguel Telegrafista a mensagem ao Ministério da Agricultura. Ele era, pois, o que sabia do serviço meteorológico. Toda vez que o sineiro Cândido Bedocha dava o dobre de finados, na Igrejinha do Menino Deus, Guarany já sabia que, à hora do enterro, ele deveria, portas fechadas, na Capela de Santa Verônica do Cemitério Novo, proceder à punção, na altura do fígado ou do baço do “falecente” a fim de informar ao Ministério da Saúde a incidência de certas endemias rurais freqüentes na Bacia do Corrente.
Ele era, Ademais, uma mistura cabocla de Miguel Ângelo Buonarroti, Rafael Sanzio, e Leonardo da Vinci, pois, como aqueles super-gênios italianos da renascença, Mestre Guarany, não só pintava (cidades de lapinhas) como erigia, anualmente, seu presépio mecânico, no qual a procissão de fiéis e andor, todos esculpido em madeira, percorrendo a suposta Rua do Riacho, contornavam o Morro do Menino Deus para, minutos depois, reaparecer ante os olhos pasmados dos visitantes. Estes não adivinhavam a invisível grande roda dentada, movida por uma engrenagem simples que maninho, o filho caçula, com uma manivela, acionava uma polía no cômodo vizinho.
Por volta dos anos 20, quando o intendente de turno exibiu o primeiro velocípede esnobado por um dos seus sobrinhos, nunca imaginou que no dia seguinte, Guarany fosse capaz de fazer um velocípede de madeira com roda de cambotas. O povo vibrava mais com o triciclo de pau, “indústria local”, duque com o seu congênere vindo da capital. Foi um sucesso!
Como se sentisse reptado, o intendente, nas novas férias escolares fez vir outro sobrinho estudante da capital para esnobar montado em uma bicicleta. A exibição foi na rua dos cais. A geringonça de apenas duas rodas impressionou tanto aos tabaréus e brejeiros, que um destes, aprovado, pensando que estava diante de um gigantesco louva-adeus, foi correr e terminou caindo no rio, no que gerou uma grande algazarra dos circunstantes. Na semana seguinte, em horas noturnas, na várzea onde se jogava futebol, entre os riachos e os quintais da Rua de Cima, Chico, o filho adolescente de Guarany, levava uma queda atrás da outra, no torturante aprendizado do ciclismo, em bicicleta de madeira que Guarany fabricou com tração na roda dianteira e sem precisar de corrente de transmissão.
No que diz respeito à política, Mestre Guarany nada tinha de anacrônico, senão, ao contrário, sempre esteve em dia com a marcha da História, sobretudo depois de 1919, quando Tibúrcio Paes Landim, fundou com Claudemiro Santos o jornal “A Idéia”, cuja segunda edição foi empastelada pela polícia a mando do intendente, e o prelo, uma primitiva prensa, com tipos e tudo atirados às profundezas do Rio Corrente.
Ele fez parte da dissimulada ala esquerda da UDN local, juntamente com Mário de Campos Cordeiro (ex-membro da Coluna Prestes), o padeiro Anselmo Normanha, o agricultor Arnaldo Pereira, o escriturário Ozias Almeida, o alfaiate Vavá de Benevides Prado, o licorista Hermes Almeida, o comerciante Antonio Lisboa de Morais, o funcionário dos correios Ely Magalhães, e o médico José Borba.
Com essa base social, foi possível se criar, em 1950, a Sociedade dos Trabalhadores de Santa Maria da Vitória, STSMV, a exemplo da “Sociedade Operária” que, no vizinho município de Santana, por inspiração de Manuel Cruz, foi fundada anos antes. Mestre Guarany era o vice-presidente da STSMV, porém foi o seu diretor de jure e de facto pois o presidente (Clodomir Morais) teve de se ausentar da área.
Com a misteriosa morte de seu filho Ulisses, oficial do exercito e excelente músico (ao ser transferido da prisão de Aracaju para Porto Alegre), perseguido pelo fato de se alinhar com o general nacionalista Estilac leal, ministro da Guerra do governo constitucional de Getúlio Vargas, Mestre Guarany radicalizou e passou a ser o distribuidor clandestino de publicações políticas de cunho proletário, até que sobreveio o covarde assassinato de prefeito Dr. José Borba, em 1952, por um cabo de polícia local.
O temor frente àquela execrável violência se encarregou de arrefecer a mística da Sociedade dos Trabalhadores de Santa Maria da Vitória. Muitos dos dirigentes e associados tiveram que migrar. Guarany, sim, não arredou o pé de lá. No entanto, a partir, daí, ele passou a se dedicar quase exclusivamente à escultura de carrancas de barcas, que sempre foi o seu forte.
Nessa arte nunca lhe faltaram encomendas, principalmente depois que fez uma carranca para a maior barca que circulou no São Francisco e afluentes, a “Mississipe” de Mariano Borges, que transportava 20 mil rapaduras (40 toneladas). Esta barca, que foi construída por Zé Timóteo, Camilo de Martinha e Antônio Calafate, ocupava 20 remeiros nas duas coxias, movendo 18 varas e duas velas na subida; e na voga, 5 remos de cada lado.
Mesmo depois que o motor de centro e os dois “mastros de caravela” sergipanas proscreveram as antigas barcas, Guarany continuou atendendo as numerosas encomendas (inclusive do estrangeiro), até que já não teve mais força para a marreta, a enxó e o formão com que esculpia suas carrancas magistrais. Estas figuram hoje dentro e fora do país, chegando mesmo a inspirar o poeta Carlos Drummond de Andrade em versos a Mestre Guarany. Mais ainda: elas motivaram o convite para que esse escultor negro de Santa Maria da Vitória ir a um evento internacional na Nigéria onde teria a oportunidade de conhecer descendentes de escravos forros que regressaram à África no século passado. Porem o nosso artista maior da escultura são-franciscana recusou o convite alegando que jamais entraria em um avião e acrescentavam: – “nessa barca voadora eu mesmo não me meto. Ela só me mata se encalhar de cima de mim…”.
Talvez por esta obstinação é que o Mestre Guarany viveu uma centúria e lucidamente. Faleceu aos 103 anos de idade, sempre firme na sua postura progressista sem alarde, colaborando, ademais, com a geração de jovens de vanguarda que criaram o jornal “O Posseiro”, a Biblioteca Campesina, a “Casa da Cultura Antonio Lisboa de Morais”, a Tipografia “Mestre Zinza”, o METRU (Museu Escola de Tecnologia Rural), hoje reunidos na Associação de Desenvolvimento Rural Integrado, ADERI, de Santa Maria da Vitória, no Oeste Baiano.
(*) Por Clodomir Morais
Maceió, 19-11-95
Clodomir Santos de Morais foi um sociólogo brasileiro que originou o Workshop de Organização (OW) e o Método de Capacitação de Grandes Grupos Baseado em Atividades (LGCM) associado.
Nas décadas de 1940 e 1950, de Morais trabalhou como sindicalista e jornalista, tornando-se deputado estadual de Pernambuco e cofundador das Ligas Camponêsas. Após o golpe de 1964 foi forçado ao exílio, primeiro no Chile , e, como Conselheiro Regional da OIT para a Reforma Agrária para a América Central, trabalhou posteriormente como consultor de Reforma Agrária na América Latina , Portugal e África .
Após o fim do regime militar, Morais regressou ao Brasil em 1988, respondendo a um apelo da Universidade de Brasília para ajudar na “guerra civil oculta” do desemprego. Perfil reproduzido do site Wikipedia. Acesse: https://en.wikipedia.org/wiki/Clodomir_Santos_de_Morais
(*) Joaquim Lisboa Neto, colunista do Jornal Brasil Popular, coordenador na Biblioteca Campesina, em Santa Maria da Vitória, Bahia; ativista político de esquerda, militante em prol da soberania nacional.