Início o dia com a triste notícia da morte de um dos grandes nomes do pensamento econômico heterodoxo latino-americano: Maria da Conceição Tavares. Deixou-nos aos 94 anos de idade, depois de uma vida inteira dedicada ao ensino e a pregação de uma ciência econômica rebelde em relação a visão neoclássica dominante no mundo ocidental. Foi, sem dúvida, uma grande lutadora que deixou a marca de sua passagem em sua vasta e relevante obra como professora universitária, nos seus escritos e na militância política.
Conceição, natural de Portugal, foi um verdadeiro presente que nossos colonizadores nos propiciariam como resultado da repressão da ditatura de Salazar. Chegada ao Brasil, iniciou-se no estudo de Ciências Econômicas na URFJ e aproximou-se de pensadores progressistas e nacionalistas, como Ignácio Rangel e dos corpos técnicos do BNDE e do Escritório da CEPAL-ONU no Rio de Janeiro. Era o período da formulação do Plano de Metas de Juscelino Kubistchek.
Fui seu aluno no Curso de Técnico em Desenvolvimento Econômico CEPAL-BNDE, em 1961, em que ela ao lado do grande pensador chileno Anibal Santa Cruz, do economista Oswaldo Sunkel, de conferencistas como Ignácio Rangel, Hélio Jaguaribe e outros, nos apresentaram o pensamento da CEPAL sobre a necessidade da industrialização latino-americana.
Nessa época, Celso Furtado já estava na CEPAL ao lado de Raul Prebisch, Jorge Ahumada, Anibal Santa Cruz e outros, formulando suas teses industrializantes para vencer o subdesenvolvimento na América Latina. Após o golpe militar de 1964, no Brasil, Conceição incorporou-se à equipe da CEPAL em Santiago do Chile, período em que se dedicou à pesquisa das desigualdades sociais na América Latina e colaborou informalmente com o governo de Salvador Allende, a partir de 1970.
Vale mencionar, que o pensamento industrializante e desenvolvimentista da CEPAL, a partir do início dos anos 60 do Século XX, difundiu-se bastante em toda a América Latina e penetrou no meio universitário. Cursos de Técnico em Desenvolvimento Econômico foram realizados em todo o país e formaram corpos técnicos que muito contribuíram para modernizar a administração pública no Brasil. Mesmo durante o Governo Geisel (1975-1979), o pensamento industrializante da CEPAL ainda era dominante na administração federal.
Com o desmantelamento do Acordo de Bretton Woods e o avanço do neoliberalismo nos Estados Unidos, no início dos anos 70, e a consequente crise da dívida externa, produziu-se a “década perdida” no Brasil. Isto, ensejou uma forte penetração do pensamento monetarista e anti-industrializante. ofuscando a visão desenvolvimentista de base cepalina.
Nesse novo contexto intelectual, Conceição destacou-se com seus estudos sobre a estagnação da industrialização baseada no processo de substituição de importações no Brasil. Como assessora do Movimento Democrático Brasileiro MDB e, posteriormente, do PMDB, como amiga e assessora de Ulisses Guimarães, Conceição teve importante papel na luta pela derrubada da ditadura e a volta da democracia, ocorrida em 1985.
Nunca será demais destacar o papel de Conceição na criação de centros de pensamento econômico heterodoxo no país, como a UNICAMP, em São Paulo, e o Instituto de Economia Industrial na URFJ, no Rio de Janeiro. Nestes centros, foi possível resgatar as preocupações com o pensamento econômico de Adam Smith, de Ricardo, de Marx, de Hilferding, de Schumpeter, de Keynes e de Kalecki, ofuscado então, pela concepção neoclássica da utilidade marginal, predominante na Fundação Getúlio Vargas e na FIPE da USP.
Conceição, como parte de sua luta em favor da industrialização e do avanço social da população brasileira, entrou para o PT e foi eleita deputada federal em 1998, onde teve atuação destacada na assessoria à bancada do partido na Câmara Federal. Acompanhou atentamente a ascensão do pensamento neoliberal no país a partir do Governo Collor e especialmente do governo FHC e, ao lado de Celso Furtado, sempre se posicionou contra as teses liberalizantes do “Consenso de Washington”. Assistiu à desindustrialização do país, mas nunca se deu por derrotada em sua luta pessoal contra a submissão do país aos desígnios do capital internacional. O estudo do papel deletério do capital financeiro internacional no desenvolvimento do país. sempre esteve no campo de suas preocupações.
Como professora, muito contribuiu para a formação de toda uma geração de economistas e cientistas sociais, vinculados ao ideário da esquerda. Entre seus parceiros e discípulos cabe mencionar Luis Gonzzaga Belluzzo, João Manoel Cardozo de Mello, Luciano Coutinho, Wilson Cano, Carlos Lessa, José Luís Fiori e muitos outros.
Guardo muitas recordações do convívio com ela nas várias oportunidades em que participei de conversas frutíferas. Nas duas oportunidades em que fui seu aluno, em almoço em minha residência em Brasília, em uma viagem que, junto com outros amigos, fizemos ao Sul do Chile. Também, nos reuníamos regularmente nas tarefas de assessoria à Aloisio Mercadante, Líder do PT no Senado, durante o primeiro governo de Lula (2003-06). Na preparação de o Programa de Governo de Lula também estive presente, sob a brilhante liderança intelectual de Conceição. Lamentavelmente, a proposta foi descartada por Palloci e substituída pela “Carta aos Brasileiros”, que em nada contribuiu para o país superar seus graves problemas.
À querida mestra, manifesto em meu nome e no do povo brasileiro, o reconhecimento por sua contribuição inestimável à causa maior do desenvolvimento econômico e social do país.
Descansa em paz, grande guerreira! Teu exemplo, estará sempre presente nas batalhas que se desenham no horizonte por um país mais desenvolvido e socialmente mais justo.
(*) por Flavio Tavares de Lyra. Brasília, 08 de junho de 2024