Cenário cada vez mais confuso em relação a crise na Bolívia carrega uma lição: influenciadores devem resistir à tentação do comentarismo apressado
A mais recente convulsão política na Bolívia ainda carece de explicações mais precisas, porém uma lição já pode ser tomada: os influenciadores digitais progressistas precisam evitar a tentação de comentar apressadamente sobre temas dos quais pouco sabem em sua busca incessante por “curtidas” nas redes sociais. Não apenas porque “a pressa é inimiga da perfeição”, mas também, como diz outro ditado popular, porque “apressado come cru”. E, neste caso, pode gerar uma baita indigestão política.
Quando o presidente Luis (Lucho) Arce anunciou ao mundo que havia mobilizações irregulares do exército em La Paz, todos ficaram apreensivos, com razão. As imagens que chegavam do Palácio Quemado, sede do governo boliviano, sob iminente invasão por tropas e veículos militares, levaram à conclusão lógica de que mais um golpe de Estado estava em curso em Nuestra América. E, quando o amotinamento foi desmobilizado após o enfrentamento verbal, cara a cara, entre o presidente e o general Juan José Zúñiga, muitos correram para as redes para celebrar a valentia do mandatário boliviano. As cenas de soldados sendo expulsos da Plaza Murillo por cidadãos indignados pareceu lavar a alma esquerdista, como se houvesse sido descoberto o antídoto para vencer o golpismo inerente às elites militares e econômicas de nosso continente.
No entanto, a euforia logo esvaiu-se quando gestos inusitados começaram a se suceder em cadeia. Observadores argutos logo perceberam que havia (e ainda há) importantes interrogantes no ar.[1] Primeiro, o próprio Zúñiga, que desistiu de sua intentona após ouvir meia dúzia de palavras de Arce às portas do palácio. É curioso que um general acompanhado por suas tropas desista da tomada do governo somente porque recebeu um olhar firme daquele cujo mandato pretendia destituir. Mais estranho ainda foi sua declaração, ao ser preso, de que teria feito todo aquele mise en scène a pedido do próprio Arce, com o fito de levantar sua popularidade. Generais golpistas geralmente são mais orgulhosos do que isso e, qualquer que seja o desfecho, não costumam admitir que fizeram algo desta magnitude por mera politicagem alheia.
Zúñiga pode estar mentindo para se esquivar da culpa, é claro. Mas quando o próprio Evo Morales, que denunciara o golpe num primeiro momento, vem a público para avisar que tudo não passara de uma farsa encabeçada pelo próprio Arce, as águas tornam-se consideravelmente mais turvas. O ex-presidente e líder histórico do Movimiento Al Socialismo (MAS) pediu desculpas à comunidade internacional pelo falso alarme de golpe e partiu para uma intensa campanha de descredibilização do governo que, naturalmente, nega as acusações. Some-se a isto o silêncio da embaixada estadunidense (e o repúdio vindo dos líderes da extrema-direita, Luis Fernando Camacho e Jeanine Añez, a um golpe que pretendia libertá-los da prisão); e o cenário fica cada vez mais confuso.
As disputas políticas entre Evo e Lucho são notórias. Desde que tomou posse, as críticas do ex-presidente massista a seu ex-ministro da economia e atual chefe de governo tornaram-se praticamente diárias. Primeiro com ministros como alvo e depois com o próprio Arce sob ataque. Como é sabido, Evo deseja ser novamente candidato, mas enfrenta forte oposição da direita, dos militares, de parte da imprensa e até de ex-companheiros. Dentro do partido, a situação é nebulosa, mas o embate culminou na expulsão de Arce do MAS durante o último congresso partidário, em outubro do ano passado, abrindo o caminho para que Evo fosse o candidato massista, isto é, caso seja autorizado pelo judiciário a concorrer novamente.
Nunca houve homogeneidade política dentro do MAS, que é fruto de uma articulação entre diversas forças políticas e populares, como movimentos indígenas, camponeses e de cocaleiros, sindicais, feministas, camadas médias urbanas, coletivos estudantis, intelectuais de esquerda e até empresários progressistas. O partido é o maior “instrumento político” (MAS-IPSP)[2] que resultou das imensas mobilizações contra o neoliberalismo e as ingerências do imperialismo yankee desde os anos 1990 em diante, que culminaram nas épicas Guerra da Água (2001) e Guerras do Gás (2003/2005), quando Evo e seu partido chegam ao poder pela primeira vez.[3]
Desde então, muitos deixaram o partido e o governo, como é natural em situações análogas, pois as dissidências tendem a aumentar quando é chegada a hora de governar. Mas o nível de embate atual é sem precedentes. O ex-vice-presidente Álvaro Garcia Linera, grande ideólogo do projeto massista de conciliação de classes (fazer o “capitalismo andino-amazônico” funcionar a partir da liderança política da “Bolívia plebeia”), veio a público nesta quarta-feira, 02 de julho, para confirmar o tamanho da crise. Para ele, Evo e Lucho estão “jogando com monstros” ao permitirem que os militares voltem a ser atores políticos em um país marcado pelas intervenções da caserna. As declarações foram prontamente rebatidas por Morales, numa rara demonstração de afastamento de seu antigo braço-direito.[4]
A situação segue em aberto no país andino e o desfecho da crise política é incerto. É provável que em breve surjam novos elementos que ajudem a montar o quebra-cabeça explicativo do que realmente aconteceu em 26 de junho. Logo, qualquer previsão neste momento seria precipitada, e até charlatanesca, diria um lendário professor de ciência política.[5] Mas uma coisa é certa: Evo pediu desculpas, mas os influenciadores digitais deveriam pedir também. E aproveitar o episódio para repensar sua função como intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, pois os formadores de opinião possuem grande responsabilidade. Na era do acirramento das disputas políticas, não são apenas as fake news que distorcem o debate em desfavor da esquerda, mas também as análises apressadas, a tentação dos ‘likes’ fáceis e a compreensível, porém traiçoeira, busca por redenção política numa fase marcada por enormes derrotas e magras vitórias.
Caso não repensem as suas práticas, os influenciadores digitais de esquerda poderão se ver em uma situação como aquela descrita na famosa canção do grupo boliviano Los Kjarkas, Llorando se fue (plagiada por um conjunto de lambada brasileiro):
“Llorando estará, recordando el amor
Que un día no supo cuidar”.
A tristeza mais profunda, obviamente, não se reduz aos influenciadores abandonados, mas aos danos políticos causados por seu frequente desvio de função.
(*) Miguel Borba de Sá é historiador pela UFRJ, doutor em Relações Internacionais pela PUC-RIO e Mestre em Ideologia e Análise de Discurso pela Universidade de Essex.