O atentado contra Trump no passado fim de semana paralisou de tal forma o Partido Democrata, seu adversário, que ele parecia morto e eliminado da campanha presidencial nos Estados Unidos e que Trump já estava eleito, (assim como Bolsonaro, em 2018, depois da facada em Juiz de Fora), e que nada mais adiantaria tentar contra sua volta ao poder – uma hipótese assustadora, inclusive para o Brasil.
Mesmo que não tivesse havido o atentado, os cinco dias seguintes seriam dominados pela Convenção Nacional do Partido Republicano, que formalizaria a candidatura de Trump e a escolha de seu vice. Foi só quando essa escolha aconteceu, no segundo ou terceiro dia da convenção, que o Partido Democrata deu os primeiros sinais de ressurreição.
Os democratas já estavam divididos e desorientados pelo desastre do debate Trump-Biden e pela teimosia de Biden em manter sua periclitante candidatura. Em cima disso, o atentado alavancava ainda mais as chances de Trump.
Mas a escolha do vice de Trump, o senador JD Vance, de 39 anos, reacionaríssimo e com pouco tempo de Senado, para o qual entrou apenas em 2022, na eleição no meio do mandato de Biden, deu aos democratas, por iniciatva da vice Kamala Harris, a oportunidade de ressuscitarem.
Kamala é cumulativamente Presidente do Senado e, assim, colega de Vance. Mal anunciada a escolha dele, ela cumpriu seu dever de cortesia parlamentar e telefonou para cumprimenta-lo pela escolha.
Como a chamada não foi respondida, Kamala deixou uma mensagem de voz com seus cumprimentos e aproveitou para lembrar que já estavam sugeridas duas datas bem próximas para o debate dos Vices, uma tradição nas campanhas presidenciais nos Estados Unidos. Para Kamala qualquer data serviria e ela convidou Vance a aceitar o debate, na data que fosse melhor para ele.
No dia seguinte Vance não tinha retornado a ligação e Kamala ligou de novo. Dessa vez foi atendida e renovou os cumprimentos e o convite. Vance naturalmente agradeceu pelos cumprimentos,mas não deu resposta ao convite. No terceiro dia, Kamala, agora delicada e maliciosamente desafiadora, insistiu publicamente na realização do debate e a campanha de Trump, aludindo à eventual deistência de Biden, respondeu que o Partido Democrata ainda não tinha candidata ou candidato oficial a Vice-Presidente e por isso Vance não podia saber com quem teria de debater. Isso impedia que respondesse ao convite.
Qualquer outra candidata ou candidato democrata a Vice seria melhor para Vance, tão reacionário que, por exemplo, é contra o aborto mesmo em casos de incesto ou estupro de adolescente e defende a aprovação de uma lei federal que criminalize a gravida que recorreu a ele, o médico que a assistiu e outros cúmplices, mesmo nos Estados em que ele era permitido.
Os republicanos não querem que se discuta a questão do aborto na campanha presidencial e ela não figura na plataforma do partido pela primeira vez em quarenta anos e não foi mencionada uma única vez nem no discurso de Trump nem nos que o precederam na última noite da convenção, na quinta-feira.
Kamala Harris foi promotora e senadora, e com essa experiência aprendeu a ser uma debatedora temível e ao mesmo empo inteligente e elegante, o oposto da grossura machista de Trump. Além disso, é mulher e num debate conseguiria desmoralizar Vance, demonstrando que suas posições antiaborto em qualquer caso e em todo o país não são de defesa da família e da vida e sim contra a mulher e a emancipação feminina – posições que na verdade tentam esconder por trás do “Make America Great Again “ (MAGA) (“Faça a América Grande de Novo”) uma pregação bem diferente, patriarcalista e racista: “Make America White Again”)(“Faça a América Branca de Novo”) – a América da supremacia branca e masculina, a América saudosista dos Estados Confederados do Sul escravista na Guerra Civil de mais de século e meio atrás e cuja bandeira apareceu profusamente na invasão do Capitólio promovida por Trump em janeiro de 2021 na rebelião que tentava e reverter sua derrota para Biden na eleição de novembro de 2020.
A expectativa de um debate em que Kamala enfrentaria o Vice de Trump e poderia derrotá-lo ressuscitou o Partido Democrata e reativou e intensificou o movimento pela desistência de Biden e sua substituição por Kamala.
Se era certo que ela derrotaria Vance num debate, era perfeitamente possível que também enfrentasse e derrotasse Trump nos debates e na eleição. E nada pior para o machista Trump que ser enfrentado e derrotado por uma mulher. E, para o racista, que essa mulher seja negra e filha de imigrantes, o pai da Jamaica e a mãe asiática.
(*) Por José Augusto Ribeiro – jornalista e escritor, é colunista do Jornal Brasil Popular com a coluna semanal “De olho no mundo”. Publicou a trilogia A Era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993); A História da Petrobrás (2023). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.