Organização para Cooperação de Xangai (OCX): nova ordem mundial no século 21 e o desafio do Consenso de Washington
A mídia conservadora e colonialista oculta a imensa mudança que ocorre nos relacionamentos internacionais desde o início do século 21.
Estas transformações começaram a ocorrer com o fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), em 1991, e a constituição da Comunidade de Estados Independentes (CEI) e da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), ambos em 1992.
Novos padrões de relacionamento foram instituídos para as nações. Embora não fosse o objetivo dos novos donos do poder, verdadeiros colonizadores, a busca pelo mundo unipolar, centrada no dólar estadunidense e na democracia eletiva vigente no Ocidente, acarretou a procura de um tipo de autonomia, não prevista na “bíblia” neoliberal – o Consenso de Washington de 1989, na parte oriental do planeta.
Logo no início do século, em 2001, foram constituídas duas organizações integradoras, fora do padrão do Consenso de Washington: os Brics, a princípio sem o S, da África do Sul, que nele ingressou em 2011; e a Organização para Cooperação de Xangai (OGX).
Atualmente, os Brics, além do Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, os fundadores, tiveram agregados o Egito, os Emirados Árabes Unidos, a Etiópia e o Irã. A Arábia Saudita ainda estuda sua integração. Os fundadores procuraram formar um “clube político” ou uma “aliança” e assim converter seu crescente poder econômico em maior influência geopolítica, o que leva cerca de 30 países, tais como Argélia, Bangladesh, Cuba, Egito, México, Paquistão, Turquia e Vietnã, a pleitearem ingresso nos Brics.
Estas instituições, que se foram constituindo neste século, representam a resposta por novos paradigmas que reajam às falácias da globalização financeira, belicista, excludente e concentradora de renda.
Neste mundo que se forma, a República Popular da China (China) ocupa posição destacada: está nos Brics, na OCX e, desde 2013, reorganizou a mais importante expansão comercial, que mudou a própria face da História: a Rota da Seda.
Marco Polo, seu pai Nicola e tio Mafeo, comerciantes venezianos, partiram na segunda metade do século 13 para desvendar o Oriente, chegando até Pequim. Ficaram encantados com os produtos e as possibilidades de lucrarem levando para Europa, com as mercadorias, a tecnologia desenvolvida pelos chineses.
As viagens dos Polo deram origem à construção de duas rotas ligando a China à Europa, que da Idade Média até a Renascença abasteceram os recém-constituídos Impérios Europeus de produtos e de avançadas tecnologias como nova maneira de fabricação de papel e impressão, a bússola e outras para navegação, permitindo a expansão colonial da Espanha, Portugal, Inglaterra, França e dos Países Baixos.
Esta nova Rota da Seda do século 21 tomou o nome de Iniciativa do Cinturão e Rota (ICR, ou BRI, da sigla em inglês).
A ICR congrega cerca de 150 países e instituições internacionais; lembremos que a ONU é constituída por 193 estados-membros. Ou seja, a ICR é verdadeira ONU de relacionamento comercial. Juntando os Brics, a OCX e a ICR, tem-se a dimensão da nova geopolítica que está transformando o mundo unipolar do Consenso de Washington no mundo multipolar que se forma neste século 21.
O mundo do século 21
Na perspectiva neoliberal, que levou a proclamar o Consenso de Washington como o objetivo para todos os países, o mundo se curvaria ao setor financeiro da economia, que se autodenominou “mercado”, impondo regras universais para concentração de renda, para eliminação de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, incentivando as disputas entre pessoas, entre grupos e Estados, de modo que somente os mais fortes tivessem autonomia em seu espaço e poder.
No entanto, nem se completaram 20 anos e já se mostra falida a perspectiva neoliberal; apenas aumentou a concentração de renda com instituições sediadas em paraísos fiscais. Miséria, fome, guerra invadiam países europeus e suas colônias e ex-colônias, como os Estados Unidos da América (EUA).
A China usou a invasão estadunidense e europeia das duas últimas décadas do século 20 para ampliar e modernizar sua industrialização, passando lenta e conscientemente a transferir para o Estado e para empresas chinesas este conhecimento. Assim, quando Xi Jinping é eleito para o Comitê Permanente do Politburo (CPP), do Comitê Central do Partido Comunista da China, em outubro de 2007, se consolidam as operações da OCX e tem início o processo para reinauguração da Nova Rota da Seda, a ICR.
Também na Rússia, o fracasso neoliberal obriga Boris Iéltsin a renunciar, em surpreendente comunicado ao meio-dia (horário de Moscou) de 31/12/1999. A antiga terra dos czares inicia o século 21 com outra perspectiva de política interna e externa, sob comando de Vladimir Putin.
A perspectiva de um só governo – o das finanças; uma só moeda – o dólar estadunidense; e única ideologia – a neoliberal, se transforma no mundo multipolar, de respeito às soberanias nacionais, de complementaridades tecnológicas e econômicas e de auxílios voluntários às diversidades de toda ordem.
Um grande exemplo, que não é tratado nas mídias ocidentais, nos é dado por países africanos da Faixa do Sahel. O Sahel é a faixa de 500 a 700 km de largura e 5.400 km de extensão, formada por: Mauritânia, Senegal, Mali, Burkina Faso, Níger, Chade, Sudão, Etiópia, Eritréia, Djibuti, tendo pequena parte no norte da Nigéria. Nesta Faixa está ocorrendo um segundo movimento de independência.
Foi do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) que saiu, para fora da África, a primeira notícia da tragédia vivida pelo aguçamento da exploração colonial trazido pelo neoliberalismo na paupérrima região do Sahel: centenas de milhares, e até mesmo milhões de pessoas, fugiam dos lugares onde viviam.
Como se expressou, no recente discurso sobre a vitória nas eleições francesas, o grande líder do movimento França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, “ninguém sai de sua casa sem que seja impossível lá permanecer”. E o que trouxe o neoliberalismo financeiro senão a fome e a morte espalhando-se no mundo?
Em julho de 2020, Kathryn Mahoney, da Acnur em Nova York, escrevia: “Em Burkina Faso quase nenhum lugar é seguro. Grupos armados, extremistas e facções criminosas aterrorizam a população diariamente, matando aqueles que se recusam a lutar do lado deles. Atiram nas famílias até que elas morram. Estupram e torturam mulheres. Destroem qualquer coisa que simbolize o Estado: escolas, delegacias e até hospitais”. E esta situação se expandiu pelo Mali e pelo Níger, países vizinhos e também ex-colônias francesas.
Em outubro de 2023, António Tonga, da Liga Internacional dos Trabalhadores Quarta Internacional (LIT-QI), no artigo “África: Sahel dos Golpes à Revolução” registrou: “A 26 de julho deste ano ocorria no Níger o golpe de Estado que redundou na tomada do poder pelos militares, na figura do general Abdulrahman Tchiani, comandante da Guarda Presidencial do deposto Mohammed Bazoum. Assim, Níger juntava-se a Burkina Faso, Guiné, Mali e, posteriormente, ao Gabão, na lista de países onde ocorreram golpes de Estado”.
Tonga discorre sobre a exploração colonial nestes países, ricos em recursos minerais e petróleo, que lhe deixavam somente a fome e a miséria. Todos sem moeda própria, pois o “franco CFA”, moeda das ex-colônias francesas, era emitido e controlado pelo Tesouro Francês. António Tonga também desconfia dos novos amigos e conclui pela unidade africana na defesa dos seus habitantes.
Não somente os “comunistas”, mas, em 9/7/2024, o Vatican News noticiava que “os líderes dos regimes militares do Mali, Burkina Faso e Níger proclamaram uma confederação de três estados do Sahel”. E no artigo assinado por Nathan Morley se lia:
“Na sua primeira reunião de cúpula, assinaram quatro documentos: o tratado que institui a Confederação dos Estados do Sahel, as regras de procedimento do colégio de chefes de estado da aliança, o comunicado final e o documento intitulado ‘Declaração de Niamey’. A partir de agora, espera-se que o novo grupo colabore nas questões de segurança e estreite laços econômicos, incluindo eventualmente a criação de moeda comum. As três nações – que juntas possuem uma população estimada de mais de 70 milhões de habitantes – sofrem com a insegurança provocada por facções violentas”.
Como resposta às preocupações de António Tonga, estes líderes, reunidos no Níger, propunham criação da Confederação da Aliança dos Estados do Sahel, onde se afastariam dos países ocidentais, buscando novas parcerias com “a Turquia, a Rússia e o Irã”.
Enquanto este Ocidente, indesejado na aliança dos povos do Sahel, com falsas e ferozes razões persuade seus habitantes à guerra na Ucrânia e ao genocídio praticado pelo Estado de Israel contra o povo palestino, provoca golpes na Bolívia, ameaças em águas do Oceano Pacífico e no Golfo do México, surge, com iniciativas chinesas, o mundo multipolar que a Organização para Cooperação de Xangai (OCX) é uma realidade da qual trataremos.
A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) se transformou no braço armado das finanças apátridas para disseminar guerras pelo planeta. Sobre as reuniões em Washington, na semana de 8/12 de julho de 2024, o jornalista David Sanger, do New York Times, escreveu: “A declaração da Otan, no segundo dia da reunião, representa mudança significativa da aliança, que nunca havia mencionado a China como preocupação até 2019. Também configura a adesão oficial dos países aliados às denúncias de Washington sobre o apoio militar de Pequim a Moscou. Na quinta-feira, antes da reunião com Volodymir Zelensky, presidente da Ucrânia, membros da aliança ocidental debateram com aliados da região asiática, o apoio da China à Rússia no conflito europeu”.
Organização para Cooperação de Xangai (OCX)
Com nome de “Cinco de Xangai”, em 1996, Rússia, China e três das ex-repúblicas socialistas soviéticas (Cazaquistão, Quirguistão e Uzbequistão) se uniram para ir além da promoção econômica; reforçar os laços para coordenação política e reduzir a influência militar dos EUA na região.
A OCX buscou dar efetivas condições para que, principalmente nos países asiáticos, houvesse como enfrentar a dominação financeira de capitais ocidentais.
Em junho de 2002, os chefes dos estados-membros da OCX reuniram-se em São Petersburgo (Rússia). Foi, então, assinada a Carta OCX, que expôs os propósitos, princípios, estruturas e formas de operação da organização. Seus então seis membros plenos já respondiam por 60% da massa de terras da Eurásia, e sua população, um quarto da mundial.
Nestes pouco mais de 20 anos, a OCX cresceu e se consolidou como verdadeira organização de fomento ao desenvolvimento e da proteção do que já foi denominado Terceiro Mundo – nações colonizadas pela Europa na Ásia e na África.
A OGX possui atualmente nove membros plenos: China e Rússia – que são também das línguas oficiais – Cazaquistão, Índia, Irã, Paquistão, Quirguistão, Tajiquistão e Uzbequistão; três observadores: Afeganistão, Bielorrússia e Mongólia; além de nove parceiros de diálogo: Arábia Saudita, Armênia, Azerbaijão, Camboja, Catar, Egito, Nepal, Sri Lanka e Turquia. A Turquia, por seu presidente, Recep Erdoğan, manifestou neste mês de julho de 2024 interesse em ser membro pleno. Além destes, a Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean), a CEI, já referida, e a Organização das Nações Unidas (ONU) são convidadas para as reuniões, como o é, igualmente, o Turquemenistão.
A OCX surge não para luta política, mas para a construção de nações com suas culturas próprias, com seus princípios, com suas prioridades. É a imensa diferença que a separa de um Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), de um Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird), também conhecido como Banco Mundial (WB), de um Fundo Monetário Internacional (FMI), pois não impõe regras globais, sistemas políticos, ideologias alienígenas. A OCX respeita as diversidades, acredita no mundo multipolar, pois as realidades físicas e humanas não são as mesmas em todo globo terrestres.
Enquanto as instituições e organismos ocidentais trabalham para desconstruir as estruturas dos Estados Nacionais e empoderar o “mercado”, restrito ao financeiro, a OCX é uma ferramenta para construção diversificada de Estados Nacionais, respeitando suas culturas, os interesses das nações, e objetivos de seus habitantes.
Verdadeiramente existe a oposição entre o mundo unipolar do Consenso de Washington e o multipolar dos Brics, da ICR e da OCX.
(*) Por Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil
Acesse: https://monitormercantil.com.br/organizacao-para-cooperacao-de-xangai-ocx-e-o-mundo-do-seculo-21/