Ao menos 2.000 militares da ativa estiveram filiados a partidos políticos nos últimos anos, em violação ao artigo favorito das Forças Armadas na Constituição brasileira. O artigo 142, no inciso 5º parágrafo 3º, é muito claro: “o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos”.
Mesmo assim, entre a eleição de Jair Bolsonaro e os dois primeiros anos de seu governo – ou seja, entre 2018 e 2020 -, mais de 600 militares da ativa se filiaram a partidos e engordaram o contingente partidário das três Forças: 63% no Exército, 20% na Marinha e 17% na Aeronáutica.
Os batalhões de filiados deram preferência ao PSL, então partido de Jair Bolsonaro. Em 2021, o PSL se fundiu ao DEM. A sigla resultante, o União Brasil, chegou a ter um de cada quatro militares filiados. O PT, segundo colocado, tinha um em cada 10.
Para o professor Chico Carlos Teixeira, da UFRJ e da Escola de Comando do Exército, trata-se de uma demonstração de uso da patente militar como trampolim político. “É descaso do Ministro da Defesa e falta da grave do comandante”.
A partir de 2021, uma parte desses militares filiados começou a deixar os partidos. A maioria, porém, segue ligada a alguma sigla. São 1.250 militares da ativa que ainda estão vinculados a um partido, inclusive oficiais de alta patente.
Um exemplo de militar da elite da tropa com filiação partidária é o coronel Fernando Guimarães de Siqueira. Ele participou das missões de paz no Haiti, Congo e Costa do Marfim. Recebeu sete condecorações, inclusive duas das mais importantes:
- Medalha do Pacificador, concedida a militares que se destacam por serviços relevantes ao país ou ao Exército, atos de coragem e bravura, ou atos de abnegação;
- Medalha Marechal Osório – O Legendário, concedida a militares que se destacaram em missões operacionais e que demonstraram grande capacidade de liderança.
Até maio deste ano, o coronel Guimarães de Siqueira comandava a Base Administrativa do Comando de Operações Especiais, uma das unidades de elite do Exército. Antes, fora subcomandante do 1º Batalhão de Ações de Comandos, em Goiânia (GO). Foi lá que o coronel fez sua iniciação partidária. Em 1º de outubro de 2018, uma semana antes do primeiro turno do pleito que elegeria Bolsonaro, o coronel se filiou ao que viria a ser União Brasil.
Menos de três anos depois, em abril de 2021, o coronel pediu desfiliação. Mas algo deu errado. O processo não foi concluído e, até quarta-feira (7 de abril de 2024), era possível obter uma certidão de filiação regular do coronel Fernando Guimarães de Siqueira ao União Brasil (autenticação: 70C5.ED1F.C45F.122D). A certidão contém uma observação: “Consta lançamento de desfiliação com pendência de comunicação à Justiça Eleitoral”.
O advogado Alexandre Rollo, especialista em Justiça Eleitoral, explica o que pode ter acontecido:
Filiações e desfiliações são feitas pelos próprios partidos que, por sua vez, alimentam o sistema da Justiça Eleitoral. Ela só recebe as comunicações dos partidos através de um programa chamando filiaweb. A pessoa deve ter comunicado sua desfiliação à Justiça Eleitoral, mas ainda consta da relação de filiados do partido. Ou seja, o partido ainda não excluiu o nome dele de sua lista de filiados.
Seja como for, para a Justiça Eleitoral, o coronel segue filiado ao União Brasil. Mesmo que tivesse concluído a desfiliação, isso não corrigiria o desrespeito à Constituição nos anos em que o coronel passou filiado a um partido político. E, como ele, centenas de colegas seus de farda.
Há uma situação, porém, em que a Constituição entra em conflito consigo mesma. Diz o artigo 14:
“O militar alistável é elegível, atendidas as seguintes condições:
I – se contar menos de dez anos de serviço, deverá afastar-se da atividade;
II – se contar mais de dez anos de serviço, será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação, para a inatividade. § 9o Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.”
Na prática, significa que a própria Constituição abre uma porta para militares da ativa se filiarem provisoriamente a um partido para serem candidatos numa eleição. Mesmo assim, se eleitos, devem passar à reserva. Mas essa exceção não se aplica à maior parte dos militares filiados a partidos. A maioria nunca foi candidata, inclusive o coronel Fernando Guimarães de Siqueira.
Essa brecha é uma excrescência criada durante a ditadura militar e referendada pela Constituição de 1988 após muita pressão dos comandantes militares ao constituintes.
Segundo estudo dos pesquisadores Rodrigo Lentz e Pedro Kelson, a elegibilidade de militares da ativa é uma jabuticaba jurídica que não encontra paralelo entre países democráticos. A prática é proibida nos EUA, Reino Unido, França, Argentina e Chile, entre muitos outros países. E por um bom motivo:
“Como demonstra o aprendizado institucional dos países da Europa e do Cone Sul, (a elegibilidade de militares, sobretudo da ativa) contribui para a desestabilização do regime democrático (…) historicamente está associada a regimes autoritários e a violações das liberdades democráticas.”
Procurado, o Ministério da Defesa disse que não tem ingerência sobre a carreira dos militares. Por isso, avisou que não responderia sobre eventuais punições a esses militares e iniciativas sobre a questão. A pasta disse que apoia a PEC 42/2023, que tramita no Congresso e prevê que os militares das Forças Armadas que se candidatarem para cargos eletivos serão transferidos, no registro da candidatura, para a reserva.
O Exército afirmou que “cronologicamente, a publicação dos atos de exoneração dos Comandantes de Organização Militar antecede às respectivas passagens de Comando e de seus encargos, como os de ordenador de despesas. Dessa forma, nesse período, é natural que haja documentos de rotina assinados pelo Comandante, que também é o dirigente máximo da Organização Militar”.
A nota diz ainda que “o militar citado foi afiliado a um partido político, à revelia de sua vontade, em 2018. Tão logo tomou conhecimento deste fato, solicitou sua desfiliação partidária, a qual não foi concluída em razão de questões técnicas relativas ao acesso digital à plataforma. Assim, em sua certidão de filiação partidária, consta referência à tentativa de desfiliação”.
Por fim, o Exército destaca que “cabe, ainda, esclarecer que a Instituição não coaduna com nenhum tipo de desvio de conduta, independente de sua natureza, apurando fatos e adotando as medidas julgadas cabíveis.”
O TSE também foi procurado, mas não respondeu aos questionamentos até o momento.
Podcast A Hora, com José Roberto de Toledo e Thais Bilenky
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Militar da ativa pode filiar-se a partido político?
Em regra, os militares não podem se filiar a partidos políticos, nem mesmo quando candidatos.
Aos militares não se aplicam a regra prevista na Constituição de 1988 de filiação obrigatória.
Art. 14.§ 3 São condições de elegibilidade:
V- a filiação partidária;
Art. 142. V O militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos;
Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.
§ 1º Às forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para eximirem de atividade de caráter essencialmente militar.
A quem não desejar servir por questões de convicção política é possível o serviço alternativo. Conforme previsão constitucional.
A grande questão é quando o militar se encontra incorporado e declara que se filiou a partido político. É possível que a Administração Militar possa determinar a desfiliação de militar na ativa? Sim, pois há comando constitucional que veda a filiação partidária.
Jalil Gubiani Advogado Militar | advogadomilitar.adv.br; #jalilgubianiadvogados