Os desafios enfrentados pela população brasileira na superação do racismo são imensos, mas, apesar de toda adversidade, a construção de uma sociedade antirracista avança, derrubando obstáculos antigos e novos. Nesse contexto, a escola desempenha um papel crucial na implementação das leis de ações afirmativas no País, como a Lei nº 12.711, 29 de agosto de 2012, a Lei de Cotas, que, nesta quinta-feira (29), completa 12 anos.
Essa lei instituiu as cotas para estudantes de escolas públicas e subcotas para negros, quilombolas, indígenas, pessoas com deficiência e estudantes oriundos de famílias com renda de até um salário-mínimo e meio.
Para discutir a luta histórica pela inclusão social por meio das políticas de ação afirmativa, o Sinpro-DF entrevistou o Sales Augusto Santos, professor visitante da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Com uma trajetória acadêmica destacada na Universidade de Brasília (UnB), onde completou graduação, mestrado e doutorado em Sociologia, o professor Santos foi o primeiro negro brasileiro a receber o prêmio de melhor tese de doutorado da Latin American Studies Association (LASA) em 2009.
Ele também realizou pós-doutorado na University of Wisconsin Milwaukee e na Brown University. Com expertise em Sociologia das Relações Raciais e Educação das Relações Étnico-Raciais, Santos investiga temas como movimentos sociais negros, discriminação racial, e políticas de ação afirmativa. Atuou como coordenador do “Grupo de Trabalho – Publicações” da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) e da “Série Violência em Manchete” do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).
Além de ser membro de diversas associações acadêmicas, incluindo a Sociedade Brasileira de Sociologia e a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), ele também integrou a Anti-Harassment Task Force da LASA. Atualmente, é professor visitante no Departamento de Ciências Sociais da UFV. Confira a análise do professor Santos sobre a Lei de Cotas e sua visão sobre a trajetória da luta antirracista e pela inclusão social no Brasil.
ENTREVISTA – SALES AUGUSTO DOS SANTOS
Sinpro-DF – Há quanto tempo você estuda a questão racial no Brasil, incluindo a Lei de Cotas e as políticas afirmativas de inclusão social?
Sales Augusto – Desde o início do meu mestrado em Sociologia na Universidade de Brasília, em 1993. No entanto, minha jornada para compreender a questão racial começou antes, com minha militância nos movimentos sociais negros. Esses movimentos foram fundamentais para minha formação e entendimento, embora não respondessem a todas as minhas questões. Foi por isso que decidi aprofundar meus estudos com um mestrado e doutorado. Minha pesquisa sobre cotas e políticas afirmativas começou mais especificamente durante o doutorado, que terminei em 2007. A minha tese, que abordou a aprovação das cotas na UnB, foi reconhecida internacionalmente com o prêmio Martin Diskin em 2009.
Sinpro-DF – Existe uma visão de que as cotas para negros no ensino superior são uma política pública afirmativa para inclusão, mas, na prática, trata-se de uma política para promoção da equidade. Qual é a diferença entre política pública de igualdade de oportunidade e a de promoção de equidade social?
Sales Augusto – A Lei nº 12.711/2012, que estabeleceu as cotas nas instituições federais de ensino superior, definiu 50% das vagas para estudantes oriundos da rede pública. Esse critério de inclusão também atua como um critério de exclusão: quem não vem de escola pública não tem acesso às cotas. As cotas não são especificamente para negros, mas há subcotas para negros, indígenas e pessoas com deficiência, além de uma recente inclusão de quilombolas. A lei busca promover a equidade, mas não garante igualdade plena. O conceito de equidade vai além da mera igualdade de oportunidades, tratando das desigualdades históricas e estruturais. A lei de cotas não é uma forma de “reparação”, mas um esforço para corrigir desigualdades e permitir uma inclusão mais ampla.
Sinpro-DF – Como é possível, por meio da Lei de Cotas, tratar desigualmente os desiguais para corrigir injustiças sociais?
Sales Augusto – A ideia de tratar desigualmente os desiguais é uma discussão mais comum no campo jurídico e na direita política. Não está explicitamente descrita na Constituição, mas faz parte da discussão filosófica sobre legalidade. Quando defendemos o sistema de cotas, estamos buscando garantir que um grupo historicamente excluído tenha acesso às mesmas oportunidades que outros grupos. O sistema de cotas visa permitir que mais pessoas de origens diversas entrem na universidade, refletindo a diversidade da sociedade. A inclusão coletiva é o que diferencia o sistema de cotas, permitindo que grupos antes marginalizados ingressem em maior número.
Sinpro-DF – Como e quando começaram as demandas por políticas afirmativas no Brasil?
Sales Augusto – As demandas por políticas afirmativas no Brasil não começaram em 1995, com a Marcha Zumbi dos Palmares, embora a marcha tenha sido um marco importante. As propostas por ações afirmativas começaram na década de 1940, com a Convenção Nacional do Negro, organizada pelo Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias Nascimento. Ele propôs, entre outras coisas, a concessão de bolsas de estudo para negros. Esse foi o primeiro registro formal de demanda por ações afirmativas no Brasil. Abdias Nascimento também apresentou um projeto de lei em 1983 para políticas afirmativas na área de trabalho e educação, que, infelizmente, foi arquivado. A luta continuou ao longo dos anos e culminou na aprovação das cotas na Universidade de Brasília e outras instituições antes da lei federal de 2012.
Sinpro-DF – Como a Educação Básica pública pode contribuir para melhorar a aplicação da Lei de Cotas e outras políticas de ações afirmativas?
Sales Augusto – Recentemente, realizei uma pesquisa para responder às críticas ao sistema de cotas, que alegavam que ele seria paternalista e estigmatizante. Meu estudo mostrou que a presença de jornalistas negros na Rede Globo aumentou significativamente desde a implementação das cotas, refutando a ideia de que a qualificação levaria a uma maior estigmatização. A pesquisa revela que as cotas melhoram as condições dos beneficiários, desafiando a narrativa negativa sobre o sistema. A Educação Básica pode desempenhar um papel crucial na implementação das políticas afirmativas ao garantir uma base sólida e inclusiva para todos os alunos. A criação da Secretaria de Igualdade Racial durante o primeiro mandato de Lula e a legislação relacionada são passos importantes. No entanto, a promoção da igualdade racial deve envolver políticas valorizativas e focalizadas que integrem o ensino da contribuição de todas as etnias para a formação do país, além de ações afirmativas para grupos racialmente discriminados.
Sinpro-DF – Quais suas considerações finais sobre a Lei 12.711/12?
Sales Augusto – O debate sobre a Lei 12.711/12 e suas implicações para a educação brasileira é complexo e multifacetado. A Lei de Cotas é um importante passo para promover a equidade, mas não resolve todas as desigualdades. As políticas afirmativas são uma tentativa de corrigir injustiças históricas e criar oportunidades mais igualitárias, mas o verdadeiro sucesso dependerá de um compromisso contínuo com a inclusão e a promoção da diversidade em todos os níveis da educação e da sociedade.
Acesse também matéria sobre o livro que traz o perfil dos primeiros estudantes cotistas formados na UnB:
https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/eu-estudante/ensino_ensinosuperior/2015/11/20/ensino_ensinosuperior_interna,507468/livro-traz-perfil-dos-primeiros-estudantes-cotistas-formados-na-unb.shtml