Entre 2021 e 2023, foram registrados no país 164.199 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes até 19 anos, inclusive do sexo masculino, segundo o relatório Panorama da Violência Letal no Brasil, um estudo divulgado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). A maioria das vítimas foram do sexo feminino (87,3%), e quase a metade (48,3%) tem entre 10 e 14 anos, e 52,8% são negras (pretas e pardas).
Dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos, no período de 2020 a 2022, indicam que o Brasil teve mais de 11 mil partos por ano. As mães eram menores de 14 anos, vítimas do crime qualificado como estupro de vulnerável. Mas não só adolescentes são violentadas. O Relatório Anual Socioeconômico da Mulher, lançado pelo Ministério das Mulheres, revelou que, em 2022, foram registrados 67.626 estupros de mulheres no país, ou seja, a cada oito minutos uma mulher foi violentada.
Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJ) ressuscitou Proposta de Emenda à Constituição, elaborada por parlamentares masculinos, que proíbe todos os casos de aborto no país — estupro em todas as faixas etárias, em situação de risco de vida à gestante e em caso de feto anencéfalo.
Não sou defensora do aborto, mas não condeno quem o faça, provavelmente, forçada pelas circunstâncias da vida, em um país dominado pela desigualdade socioeconômica. Há pouco tempo, — bem antes desta desastrosa decisão —, conversei com uma psicóloga e indaguei o que significava o aborto para uma mulher. Minha amiga foi taxativa: “Ela sofrerá muito, não só fisicamente, mas emocionalmente, e, dificilmente, conseguirá superar o trauma, tanto do estupro quanto o da interrupção da gravidez”. E acrescentou: “A lembrança é como uma cicatriz”.
A decisão dos parlamentares inspira algumas dúvidas. Como reagiriam se a filha, entre 10 e 16 anos fosse vítima de violência sexual e engravidasse? Aceitariam um neto(a) fruto dessa horrenda brutalidade? Se essa filha, ou outra mais velha, corresse risco de morte se não interrompesse a gestação, a avaliação médica seria ignorada?
Se a PEC for aprovada, como pretendem os deputados, a mulher tornar-se-á de fato um objeto para a diversão do gênero oposto. Perderá a autonomia sobre seu corpo e até o direito de defender a própria vida, caso a gestação por agressão sexual resulte em gravidez. Se prosseguir com a gravidez para um encontro com a morte durante o parto, ela será apenas uma mulher a menos na sociedade. Mas será que esse desprezo vale também para mulheres de todas as camadas sociais, ou são regras restritas às pobres, às negras e às invisíveis para os Poderes da República?
A proposta ignora a violência sexual masculina contra crianças, adolescentes e jovens femininas, o que não deixa dúvida sobre a falta de sororidade daquelas parlamentares que subscrevem a emenda. É mais um indicador de que, em um país laico, valores religiosos, despojados de qualquer relação com a medicina e a ciência, espelhado nos padrões medievais, ainda influenciam decisões absurdas e dissociadas de valores civilizatórios compatíveis com o século 21 e de todos os avanços conquistados pela sociedade. Se a mulher morrer no parto e deixar órfãos não tem importância? Não tem. É o que se depreende do texto maquiavélico produzido e aprovado pela CCJ da Câmara
Mais: retira das mulheres a autonomia sobre o seu corpo. Suprime às crianças o direito de ter infância, para que assumam, precocemente, condição de mães, um absurdo que se configura como mais um ato de violência contra as mulheres, adolescentes e crianças.
O que justifica tanta crueldade contra o feminino? As políticas públicas de segurança, como depreendemos do noticiário, diariamente, têm sido ineficazes na proteção às mulheres, às adolescentes, sobretudo, à parcela das negras. Se, de fato, houvesse preocupação com a vida, seria necessário rever os investimentos em educação racial para os agentes de segurança, evitando a matança de pretos e pretas por eles. Não teríamos os altos índices de feminicídios. Haveria mais escolas e educação sexual e antirracista no currículo esciolar, moradia digna, combate sério a miséria e a tantas outras ações que tornassem autoridades, sobretudo parlamentares, plenas de humanidade e sensibilidade às reais demanda da sociedade. No dia a dia, observamos que a maioria das decisões legislativas é o avesso dessas iniciativas que poderiam transformar o Brasil em um país bem educado e com elevado índice de civilidade. Um país humano e pacificado como anseia a maioria dos brasileiros.
(*) Rosane Garcia, jornalista.
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