O advento da nova aberração
O mundo do trabalho vivencia sua fase mais aguda, desde a gênese do capitalismo. Mergulhados em uma profunda crise estrutural, que pode ser assim resumida. O sistema de capital não mais consegue acumular sem destruir. Com as fronteiras terrestres já sob seu domínio, adentramos na era da acumulação do espaço sideral.
Quadro que aflorou, a partir de 1973, quando a trípode destrutiva — financeirização, neoliberalismo e reestruturação do capital — deu impulso para que as tecnologias de informatização invadissem o mundo da produção na indústria e, em seguida, nos serviços que foram privatizados e se converteram em excepcionais laboratórios de expansão dos capitais, potencializados pelos algoritmos, Inteligência Artificial (IA), Big Data etc.
No mundo do trabalho, a explosão global do desemprego, mais intensa no Sul Global. O moinho satânico, cunhado por Karl Polanyi, chegava à era cibernética.
Essa realidade, além jogar nas alturas o desemprego, levou as grandes corporações a terem um novo leitmotiv. Com o toyotismo japonês, conhecemos a expansão ilimitada da terceirização, que nos trouxe ao trabalho intermitente, legalizado no Brasil com a Contrarreforma Trabalhista de Temer, em 2017, logo depois do Golpe que depôs Dilma Rousseff.
E foi assim que chegamos ao trabalho uberizado, aquele que se expande nas grandes plataformas digitais, articulando, com indiscreto charme, os inventos digitais e algorítmicos, com a força de trabalho desempregada e ávida por qualquer labor. O Brasil, com uma taxa de informalidade entre 30 e 40%, foi solo fértil para essa empreitada.
Mas urgia ainda encontrar uma denominação para dar vida à nova empulhação, de modo a burlar a legislação do trabalho. O reconhecimento da condição de assalariamento, por si só, obrigaria o cumprimento da legislação do trabalho que, vale recordar, foi resultado de lutas históricas da classe trabalhadora. No Brasil, a primeira greve foi feita pelos Ganhadores, trabalhadores negros que, em 1857 em Salvador, paralisaram o carregamento de mercadorias e pessoas, exigindo a extinção de opressões que tipificavam a escravização. Outro marco foi a Greve Geral de 1917, em São Paulo, que paralisou diversas categorias do operariado, na luta por direitos básicos do trabalho.
Pois bem, em pleno século XXI, na era da explosão das tecnologias digitais que poderiam reduzir expressivamente a jornada de trabalho, as empresas forjaram “novas” modalidades de trabalhos, com um condicionante inquestionável: a cabal recusa em cumprir a legislação do trabalho. Apresentando-se como “empresas prestadoras de serviços e de tecnologia”, com o estrito objetivo de obliterar a condição real de assalariamento, o trabalho uberizado deslanchou. Foi assim que as grandes plataformas digitais “redefiniram” a condição de assalariamento, milagrosamente convertido em empreendedorismo.
Um aparente paradoxo aflorou: em plena era dos algoritmos, IA, CHATGPT, Big Data etc., o capitalismo do século XXI vem recuperando formas pretéritas de exploração, expropriação e espoliação do trabalho que foram vigentes nos séculos XVIII e XIX. O crowdsourcing, por exemplo, tão cultuado hoje, é a variante digital e algorítmica do velho outsourcing, vigente durante parte da Revolução Industrial, em que homens, mulheres e crianças trabalhavam em suas casas ou em espaços fora das fábricas, desprovidos de qualquer legislação do trabalho. Nos defrontamos, então, atualmente, com um novo espectro rondando o mundo do trabalho: a epidemia da uberização.
Mas não parou aí o tamanho do problema. Um outro movimento tornou o trabalho ainda mais vulnerável: o advento da Indústria 4.0, que foi criada para potencializar a automação, digitalização, a internet das coisas (IoT) e a IA. Seu objetivo precípuo: reduzir trabalho humano, introduzindo mais máquinas digitais, robôs, ChatGPT etc., que passaram a se esparramar nas novas cadeias produtivas de (mais)valor.
O que estamos vendo hoje, com a IA calibrada pelos capitais financeiros, já apresenta resultados catastróficos para a classe trabalhadora. Se sabemos que a tecnologia floresceu junto com o primeiro microcosmo familiar, é imperioso reconhecer que a tecnologia atual está sendo prioritariamente plasmada pelo sistema do capital, que só pensa naquilo: na sua valorização. O resto é pura balela. Ou alguém conhece uma grande corporação global que ampliou a IA, reduziu significativamente a jornada de trabalho e ainda aumentou substantivamente o salário dos trabalhadores/as?
Atam-se, então, as duas pontas do mesmo processo destrutivo em relação ao trabalho: ao mesmo tempo em que a Indústria 4.0 elimina uma miríade de atividades laborativas, as grandes plataformas digitais incorporam essa força sobrante de trabalho em condições que remetem à protoforma do capitalismo.
O Brasil no meio do furacão
Primeira nota: Lula ganhou as eleições de outubro de 2022, depois de um embate eleitoral árduo. Nos subterrâneos, gestava-se um plano golpista — o “punhal verde e amarelo” — urdido pelos neofascistas. Mas Lula sagrou-se vitorioso, vale reiterar, pelo voto majoritário da classe trabalhadora.
Dentre as propostas que defendeu em sua campanha, uma é essencial: vencendo as eleições, ele revogaria a (Contra)Reforma Trabalhista de Temer. Aquela que nos legou o trabalho intermitente; a prevalência do negociado sobre o legislado; o desmonte sindical; a forte retração da Justiça do Trabalho; a perda de direitos das mulheres trabalhadoras etc. Sem falar da Lei da Terceirização, que eliminou a diferença entre atividade meio e atividade fim e, assim, propiciou a liberação geral da terceirização.
Será que Lula esqueceu dessa proposta?
O que pode explicar o PLP 12/2024, apresentado pelo governo em abril deste ano, que em seu artigo 3º afirma: “o trabalhador que preste o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículo automotor de quatro rodas […] será considerado, para fins trabalhistas, trabalhador autônomo”?
Autônomo? Como assim? Desconsiderando as pesquisas acadêmicas sérias, feitas sem recurso financeiro das plataformas? Desconhecendo a Diretiva da União Europeia, recém aprovada pelos 27 Estados-membros da região, que parte da presunção do vínculo empregatício e indica também a necessidade imperiosa de controlar os algoritmos, programados para beneficiar exclusivamente as grandes plataformas.
Se esse PLP for aprovado, uma enorme parcela da classe trabalhadora será excluída da legislação do trabalho. Não terá férias, nem 13º salário, descanso semanal, FGTS, nenhum direito para as mulheres e ainda verá liberada uma jornada (ilegal) de até 12 horas por dia, por plataforma. Se for aprovada, a porteira vai se escancarar de vez… E a conta vai sobrar para a história do Lula.
Segunda nota: As eleições municipais do último ano, se bem estão entre as mais negativas da história recente, ao menos ofereceram um lampejo crucial, ao tematizar vivamente a questão da jornada de trabalho (escala 6X1). Tema que tem sido tergiversado até mesmo pelas esquerdas dominantes, que se curvam às benesses do embuste do falso empreendedorismo.
Daí a louvável exceção de um jovem trabalhador do comércio no Rio de Janeiro, que fez sua campanha, pelo PSOL, centrada na jornada de trabalho, apontando para a exploração do trabalho presente na escala 6×1. Ao tornar esse tema eixo de sua campanha eleitoral, questões vitais foram afrontadas: o tempo extenuante de trabalho, a intensidade da exploração, que impede que essa geração de trabalhadores/as possa dispor de um mínimo de vida dotada de sentido fora do trabalho. A alternativa: a jornada 4X3, quatro dias de labuta dura e três de descanso, então, emplacou em cheio. Enquanto isso, outros, aqui e alhures, mostravam-se maravilhados com o falso empreendedorismo. Contudo, ao fazer aflorar uma das questões mais vitais do mundo do trabalho, jogou para o debate público uma real da tragédia cotidiana do trabalho.
Trabalhar, trabalhar, sem chance de estudar, sociabilizar, descansar, sem a possibilidade de viver um tempo maior fora da exaustão do trabalho. Isso porque a jornada 6×1 significa laborar, em geral, 5 dias de trabalho com 8 horas cada, mais um dia de ao menos 4 horas, para totalizar 44 horas semanais (que é a jornada legal no Brasil). Algo que frequentemente se converte em 48 horas, especialmente nos serviços do comércio, hotelaria, bares, restaurantes, shoppings etc., onde a burla é muito frequente e muitos sindicatos carecem de força social ou têm perfil mais patronal. Sem esquecer as jornadas ilimitadas presentes no trabalho motoristas e entregadores uberizados.
Pior que o 6×1, ao menos para quem gosta de futebol, só mesmo o 7×1.
Uma última nota: Nestes tempos de trabalho digital, algoritmos, IA e assemelhados, está surgindo um novo espectro que ronda o mundo do trabalho. Trata-se do espectro da uberização. Como impedir essa tragédia?
Esse é o maior desafio da classe-que-vive-do-trabalho. E há um elemento novo e quase sempre desconsiderado no cenário social global: ao mesmo tempo em que a classe trabalhadora se mostra ainda mais heterogênea em seu mosaico laborativo, está em curso também uma forte de homogeização em suas condições de trabalho, uma vez que a precarização estrutural do trabalho é uma tendência global, diminuindo em alguma medida as diferenças entre Norte e Sul. Basta pensar no trabalho imigrante global. Fonte, portanto, de novas ações e lutas da classe trabalhadora, base social imprescindível para que se possa reinventar um novo modo de vida.
(*) Ricardo Antunes é professor titular de sociologia do tabalho na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador da coleção Mundo do Trabalho, da Boitempo. Organizou os livros Riqueza e miséria do trabalho no Brasil I, II, III e IV, Infoproletários: a degradação real do trabalho virtual, Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 e Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais, todos publicados pela Boitempo. É autor, entre outros, de Os sentidos do trabalho (também publicado nos EUA, Inglaterra/Holanda, Itália, Portugal, Índia e Argentina), O caracol e sua concha, O continente do labor, O privilégio da servidão e Capitalismo pandêmico.
* Uma versão deste texto foi publicada originalmente na revista Carta Capital, edição 1343 (Edição de Fim de Ano), em 26 de dezembro de 2024.
* As opiniões dos autores de artigos não refletem, necessariamente, o pensamento do Jornal Brasil Popular, sendo de total responsabilidade do próprio autor as informações, os juízos de valor e os conceitos descritos no texto.