Ainda Estamos Todos Aqui
Nesta semana Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro de melhor atriz em filme de drama por sua atuação em “Ainda Estou Aqui”, produção original Globoplay.
No filme, a atriz revive a história real de Eunice Paiva, advogada que passou 40 anos procurando a verdade sobre Rubens Paiva, seu marido desaparecido durante a ditadura militar no Brasil. [3]
Fernanda Torres se tornou a primeira atriz brasileira a receber o Globo de Ouro na madrugada da segunda-feira, 06 de janeiro. A atriz dedicou o prêmio à sua mãe, Fernanda Montenegro, indicada em 1999 pela sua performance em Central do Brasil, também dirigido por Walter Salles.
“Vocês não têm ideia. Ela [Fernanda Montenegro] estava aqui há 25 anos. Isso é uma prova de que a arte persiste através da vida, mesmo em momentos difíceis, como os que Eunice Paiva viveu”, afirmou a atriz Fernanda Torres em seu discurso.[4]
Era o início da década de 1970, o Brasil do Ato Institucional n. 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, enfrenta o endurecimento da ditadura militar. O AI 5 impõe o fechamento do congresso, a censura prévia, a intensificação das torturas e das mortes de militantes contrários ao regime ditatorial brasileiro.[5]
No Rio de Janeiro, a família Paiva – Rubens, Eunice e seus cinco filhos – vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece.[6]
A premiação e o discurso de Fernanda Torres incendiaram a internet no Brasil – e no mundo. As buscas pela atriz brasileira na internet bateram recorde e surgiram no topo dos termos mais buscados globalmente, superando as colegas e concorrentes Angelina Jolie e Kate Winslet.[7]
Fernanda Torres foi mencionada em 2,54 milhões de posts nas redes sociais desde domingo, 05 de janeiro, até o fim da tarde do dia seguinte. Um levantamento da consultoria Bites mostrou que as publicações sobre a atriz brasileira geraram 44,2 milhões de interações entre curtidas, comentários, compartilhamentos. No mesmo período, foram 334 mil menções a Lula e 191 mil menções a Jair Bolsonaro.[8]
A arte realmente pode durar
Houve uma tentativa frustrada de boicote ao filme “Ainda Estou Aqui” pela direita brasileira. O fato é que o Brasil vivencia uma espécie de tecido social fragilizado pela polarização política. “Ainda Estou Aqui” traz as dores não reconciliadas de famílias devastadas, de pais, de mães e dos próprios mortos – talvez, por isso, toque a todos e poderia ser utilizado como convite ao diálogo político, a solucionar os temas antigos e ao início de uma <> reconciliação social entre os brasileiros. [8, 9, 10] Não é uma equação simples.
Na mesma semana da premiação de Fernanda Torres, completou-se dois anos da tentativa de golpe do 08 de janeiro de 2023. [11]
A coluna de Pedro Duran na CNN foi precisa:
“há um simbolismo profundo de que o Globo de Ouro de melhor atriz em drama tenha vindo três dias antes do dia 8 de janeiro, data que virou sinônimo de ataque à democracia brasileira.
A resiliência de Eunice Paiva, esposa de Rubens Paiva, interpretada por Fernanda, atravessou fronteiras e quebrou paradigmas sob a direção de Walter Salles, o mesmo responsável por levar o Brasil ao ponto mais próximo do Oscar até hoje, com Central do Brasil 26 anos atrás.
A história contada por Salles e interpretada por Fernanda e Selton Mello, mostra como a ditadura brasileira despedaçou famílias, pra muito além da censura, da opressão e da supressão do direito de escolha.
É impossível assistir ao filme e sentir alguma nostalgia da ditadura militar brasileira, que dizimou sonhos e impôs ao país um período sombrio que fica escancarado na cena em que Rubens Paiva, marido de Eunice, é levado de casa pra não voltar. Esse é, definitivamente, o Brasil que não queremos nunca mais.” [12]
A arte não nos deixa esquecer
Foram 21 anos de ditadura militar no Brasil. No início, a promessa era impedir o comunismo de tomar o poder (sic), seguindo-se à devolução da vida política para os civis. Parte dos representantes políticos eleitos apoiou o golpe, por isso chamado historicamente de civil-militar.
Os políticos não haviam entendido. A população não havia entendido. E os militares permaneceram no poder, restringindo e eliminando direitos civis.
Sempre, desde o primeiro momento, houve resistência. Sempre houve repressão.
Não há como defender a ditadura militar. Ainda assim, há quem deseje que ela retorne.
Os ataques de 08 de janeiro de 2023 vandalizaram e depredaram a Praça dos Três Poderes em Brasília – o centro simbólico da República do Brasil – onde uma multidão de bolsonaristas extremistas buscava instigar um [novo] golpe militar contra o governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva, estabelecendo ilegitimamente Jair Bolsonaro como presidente do Brasil. Os ataques de 08 de janeiro de 2023 foram considerados atentados ao regime democrático de direito, um atentado à democracia brasileira.
A Praça dos Três Poderes foi idealizada por Lúcio Costa e projetada por Oscar Niemeyer como representação arquitetônica da independência e harmonia entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Na Praça foram construídos, formando um triângulo eqüilátero, os edifícios-sede dos três Poderes republicanos. Ao Sul, está o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF), sede do Poder Judiciário; ao Norte, o Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo; e, a Oeste, o Congresso Nacional, sede do Poder Legislativo. [13]
A arte no resgate da memória e da verdade
Fazemos referência ao painel de Vik Muniz, inaugurado em 07 de fevereiro de 2024, que foi doado ao Senado Federal e tornou-se parte da exposição permanente do Salão Azul. Os destroços da tentativa de aniquilamento dos símbolos nacionais foram estruturados em um mosaico representativo do Congresso Nacional e da Praça dos Três Poderes, construções que carregam o simbólico intrínseco do equilíbrio dos poderes e da própria República do Brasil. [14]
O mosaico de Vik Muniz foi construído a partir dos destroços dos atos de 08 de janeiro 2023. O documentário ‘Arte no caos’, produzido pela TV Senado, retrata o processo criativo do artista Vik Muniz durante a elaboração da obra ‘8 de Janeiro de 2023’. [15]
Estamos todos aqui e a arte nos mantém conectados ao contexto de nosso tempo. Nos mantém igualmente conectados à memória de nosso povo.
As iniciativas de contar a história dos desaparecidos políticos do regime de exceção também se convertem na literatura.
Em 1994, Dom Paulo Evaristo Arns prefaciou a primeira edição do livro
“Dossiê Ditadura: Mortos e Desaparecidos Políticos no Brasil (1964-1985)”. [16]
O desaparecimento de Rubens Paiva está nas páginas 224 a 227. Seu atestado de óbito foi emitido apenas em 1996, após a edição do livro, e não consta como desfecho. [17]
A Lei dos Desaparecidos, Lei nº 9.140, de 04 de dezembro de 1995, possibilitou o reconhecimento oficial da morte do ex-deputado Rubens Paiva pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Seu corpo, entretanto, nunca foi encontrado. [17, 18]
O que me surpreendeu no prefácio de Dom Paulo Evaristo Arns foi a poesia e a esperança com que o Arcebispo, que era conhecido como “Cardeal dos Direitos Humanos”, por ter sido o fundador e líder da Comissão Justiça e Paz de São Paulo e por sua atividade política claramente vinculada à sua fé religiosa, inicia o livro:
(…)
Vejo, com o olhar da fé, nestes que morreram assassinados, também surgir a esperança na ressurreição. Deles e de toda a nossa gente brasileira. Pois, como dizia santamente nosso amigo e mártir, monsenhor Oscar Arnulfo Romero y Gadamez, arcebispo assassinado pelas mesmas forças da repressão em El Salvador: “Se me matarem ressuscitarei no povo Salvadorenho”.
Sim, para os que creem e têm fé, a certeza da morte nos entristece, mas a promessa da imortalidade nos consola e reanima. A certeza de que Deus Pai não suporta ver seus filhos amados na cruz nos confirma a ressurreição como o grande gesto vitorioso diante de todos os poderes da morte, do mal e da mentira. Pois, como diz o Apóstolo Paulo: “Realmente está escrito: Por tua causa somos entregues à morte todo o dia, fomos tidos em conta de ovelhas destinadas ao matadouro. Mas, em tudo isso vencemos por Aquele que nos amou”. (Rm 8,36-37).
Ainda há muito o que fazer para que toda a verdade venha à tona.
Ainda há muito que fazer para que nossa juventude jamais se esqueça destes tempos duros e injustos. Ainda há muito por esclarecer para que a verdade nos liberte e para que não tenhamos “aquele” Brasil nunca mais.
Há ainda muito amor e compaixão em nossos corações capazes de vencer toda dor e todo sofrimento que nos infligiram.
(…)
Segundo Dom Paulo Evaristo Arns, em outra manifestação:
“Jesus não foi indiferente nem estranho ao problema da dignidade e dos direitos da pessoa humana, nem às necessidades dos mais fracos, dos mais necessitados e das vítimas da injustiça. Em todos os momentos Ele revelou uma solidariedade real com os mais pobres e miseráveis (Mt 11, 28-30); lutou contra a injustiça, a hipocrisia, os abusos do poder, a avidez de ganho dos ricos, indiferentes aos sofrimentos dos pobres, apelando fortemente para a prestação de contas final, quando voltará na glória para julgar os vivos e os mortos.” [19]
Ainda Estamos Todos Aqui. E a mesma mensagem de esperança nos conduz.
No dia 09 de janeiro de 2025, o Papa Francisco, em seu discurso aos membros do corpo diplomático acreditado junto à Santa Sé por ocasião do ano novo, refletiu sobre a esperança e a construção da paz [20]:
(…)
E como eu gostaria que este ano de 2025 fosse verdadeiramente um ano de graça, rico de verdade, perdão, liberdade, justiça e paz! «No coração de cada pessoa, encerra-se a esperança como desejo e expectativa do bem» e cada um de nós é chamado a fazê-la florescer ao seu redor.
(…)
Como se conectam Dom Paulo Evaristo Arns e o Papa Francisco! As mensagens essencialmente nos convidam a vencer os instintos de vingança contra aqueles que nos infligiram o mal e a nos reconectarmos com o verdadeiro sentido do cristianismo – de amor fraterno e universal.
A arte, a literatura, o teatro, o cinema, são capazes de galvanizar, ao tocar o sensível e exibir o real por meio de uma linguagem tão pronta ao entendimento e mais direta e imediatamente do que toda causalidade científica possa realizar. São, pois, um modo de apropriação do real por meio de outra linguagem.
O filme Ainda Estou Aqui se enquadra naquela categoria de resistência, de que fala Vladimir Carvalho, em A Resistência em Brasília – um breve testemunho, publicado em Série O Direito Achado na Rua, vol. 7: Introdução Crítica à Justiça de Transição na América Latina (Editora UnB, 2015). É o cinema contribuindo como marca de memória para a reconstrução democrática e para a superação de todo autoritarismo, diz Vladimir, o diretor de “Barra 68 – Sem perder a ternura”.
Sejamos nós também capazes de nos inspirar pela arte e pela fé, cultivando a memória e buscando novos caminhos, buscando as ferramentas necessárias à construção de um mundo de esperança, justiça e paz.
[1] Ouvidora Pública do Serviço Florestal Brasileiro, advogada e bióloga pela Universidade de Brasília, Presidente da Comissão Justiça e Paz de Brasília.
[2] Jurista, Professor Emérito da Universidade de Brasília (UnB), fundador e coordenador do grupo de pesquisa “O Direito Achado na Rua”. Foi reitor da UnB (2008/2012), membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília
[5] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ato_Institucional_n.%C2%BA_5
[6] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ainda_Estou_Aqui_(filme_de_2024)
[11]https://pt.wikipedia.org/wiki/Ataques_de_8_de_janeiro_em_Bras%C3%ADlia
[16] https://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/livros/
[17] https://pt.wikipedia.org/wiki/Rubens_Paiva
[18] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9140compilada.htm
[19] https://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Evaristo_Arns
*As opiniões dos autores de artigos não refletem, necessariamente, o pensamento do Jornal Brasil Popular, sendo de total responsabilidade do próprio autor as informações, os juízos de valor e os conceitos descritos no texto.