Nas últimas semanas acumularam-se informações que revelam, no recrudescimento da pandemia, o agravamento da desigualdade no Brasil
Matéria publicada na página do IHU – traz entrevista com a historiadora Denise De Sordi, do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa Oswaldo Cruz – COC/FIOCRUZ, comentando o retorno do país ao Mapa da Fome. Para ela, não mais um risco, mas uma realidade concreta: “há famílias inteiras de trabalhadores vivendo nas ruas, as políticas de soberania alimentar estão paralisadas ou completamente inativas, há circuitos de garimpo dos ossos se formando nas cidades. Programas sociais que mobilizam a rede de proteção social para o combate à fome, antes de caráter nacional, agora estão esfacelados e sendo assumidos de forma fragmentada por estados e municípios. Vivemos um retrocesso que até 2016 era inimaginável, no sentido de que a saída do país do Mapa da Fome em 2014 parecia então ser uma conquista consolidada por uma série de políticas sociais que são fruto da democratização do país. Trata-se, em contexto neoliberal, de um processo de aceleração da reprodução da condição de pobreza em seus níveis mais extremos para, em resumo, baixar o valor da força de trabalho, regular o mercado de trabalho e direcionar o gasto público”.
Também do excelente sítio do IHU – – a informação de que pandemia do coronavírus, que já ultrapassou 100 milhões de infecções e matou mais de 2,1 milhões de pessoas em todo o mundo, colocou a desigualdade em destaque. As desigualdades não só geram imenso sofrimento, como contribuem para a morte de pelo menos uma pessoa a cada quatro segundos, de acordo com o relatório sobre a desigualdade da Oxfam International.
Aqui mesmo, no espaço deste Jornal Brasil Popular, comentei, em minha coluna – – esse descalabro, para lembrar a exortação do Papa Francisco, sobre ser a fome no mundo um escândalo e um crime contra os direitos humanos: “Produzimos comida suficiente para todas as pessoas, mas muitas ficam sem o pão de cada dia. Isso ‘constitui um verdadeiro escândalo’, um crime que viola direitos humanos básicos. É dever de todos extirpar esta injustiça através de ações concretas e boas práticas, e através de políticas locais e internacionais ousadas”, e lembrar – – que é principalmente de desgoverno que se morre no país.
A serviço da exacerbação acumulativa neoliberal, aprofunda-se o fosso abissal da desigualdade. O ano de 2021 ficou marcado na história do país como o mais mortal da pandemia. Mais de 424 mil pessoas morreram de covid-19, doença que forçou brasileiros a entrarem em isolamento social e deteriorou indicadores da economia do país. O ano passado, entretanto, também foi um período de lucros recordes para bancos. Só as quatro maiores instituições financeiras com ações negociadas na Bolsa de Valores de São Paulo –Banco do Brasil, Bradesco, Itaú e Santander– lucraram juntas R$ 81,6 bilhões. Enquanto isso, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), realizada pelo instituto, o trabalhador brasileiro recebia R$ 2.444 por mês até novembro de 2021. Esse é o menor valor já registrado pelo IBGE, que levanta o dado desde 2012 – .
Por isso pode-se afirmar, a desigualdade no Brasil não é uma condição natural é um projeto. Deve e pode ser superada. Em estudo ao qual remeto, não tanto pela referência a uma dada conjuntura, mas em razão de método – A Desigualdade no Brasil: deve e pode ser superada? Relatório sobre a dignidade humana e a paz no Brasil 2005-2007. Elaboração do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Francisco Whitaker Ferreira). São Paulo: Olho d’Água, 2007 – chama-se a atenção necessária para ancorar atitude política. De um lado, perscrutar o que no social compõe o índice da indignação da população brasileira diante dos atentados à dignidade humana e à paz que ocorrem em nosso país. De outra parte, identificar por meio de qualificada pesquisa a medida da percepção da desigualdade persistente na sociedade, conformando atitudes de impotência que ou naturalizam as assimetrias da estratificação social ou confirmam que a quase totalidade das ações empreendidas permanece no nível de práticas assistenciais, sem efeito estrutural significativo. Vale dizer, subordinar-se a uma injunção da política que faz parecer que a desigualdade é fator endêmico de divisão em nosso país e não um chamado ao protagonismo das comunidades na luta para a superação da injusta desigualdade.
Entre as várias formulações inscritas na obra, eu próprio me incumbi de oferecer o ponto de vista jurídico – Desigualdades sociais e protagonismo político. Direito e projeto de vida (p. 127-151) – – sobretudo para articular Direito e Liberdade, com a mediação de um jurídico instituído nas lutas sociais por reconhecimento da dignidade do humano, direito achado na rua, para que se reponha no debate acerca das reformas estruturais pelas quais passa o País, a nota do social que se vai perdendo e que acaba por retirar a dimensão ético-jurídica que deve presidir a sua orientação, ou seja, definir políticas públicas que sejam obedientes a valores. Na medida de seu potencial transformador das instituições e dos perfis de desempenho, esses valores vão permitir organizar, na sociedade e no estado, padrões de cooperação, solidariedade e participação, por meio dos quais, à lógica excludente e alienante que se sustenta no primado da acumulação, se oponha, como prioridade da ação – de governo e da sociedade – a lógica democrática que se sustenta no primado de uma equitativa distribuição. Neste ano, em 2 de outubro, teremos a oportunidade para exercitar essa opção.
(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)
José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.
Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.
Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).
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