Nay Jinknss é uma artista da fotografia de 34 anos, nascida e criada em Belém do Pará, apaixonada por todos os signos de sua terra natal, carregando sua câmera por rios, florestas e madrugadas na cidade que se movimenta longe das fantasias de uma Amazônia romantizada e irreal. Foram seus olhos negros que nessas trajetórias construíram um inédito álbum de fotos em que sua família materna e paterna doa os próprios rostos e corpos a pessoas escravizadas apartadas de si mesmas por etnógrafos e antropólogos em cartões postais (cartes de visite) no século 19.
Esse álbum é o resultado mais evidente do mestrado em “poéticas e processos de atuação em artes” que Naiara Jinknss de Castro acabou de defender na Universidade Federal do Pará (UFPA) cuja dissertação se denomina “Iluminação dos mortos”, caracterizado por “100 fotofabulações”, feitas por colagens de fotografias e memórias dela própria e de seus pais com imagens de escravizados que foram anulados e jogados ao anonimato — “à mercê de narrativas únicas e estereótipos de raça, gênero, classe, território”.
É uma “pesquisa poética”, explica a autora, entendida pelo termo fotofabulação como prática artística voltada para o estudo e a reinterpretação dos cartões postais produzidos pelos fotógrafos estrangeiros. Além da sensação de acalento que as famílias emprestadas oferecem àquelas pessoas do século 19, o que impressiona no trabalho de Nay Jinknss é que seu resgate incomoda o presente. Porque ela é crítica contumaz do hábito que dá continuidade aos cliques que não questionam o costume que até hoje perdura de tratar pessoas como personagens estéticos carregados de simbolismos que expressam o passado brasileiro coloninal.
“Elaboro esse processo para entender como os estigmas raciais presentes nessas cartes de visite impactaram a construção da minha identidade e a história da minha família”, explica. Para isso, ela fez intervenções digitais nos álbuns de sua família, restaurando as casas, as vidas, os amores, o respeito, a dignidade e tudo o que pôde oferecer como criação desse “abraço simbólico e compartilhado”.
A amiga que visita Naiara em sua casa no Natal, a fotógrafa e professora de sociologia no estado de Minas Gerais Sara Gehren folheia o álbum de fotos: “Certamente cada uma dessas pessoas casou, lavou uma louça, tinha um cachorro, como é família da Nay. Acho que a palavra reparação não funciona, mas redenção, com elas fotografadas em um cotidiano da vida delas afetivo, e não naquela relação de poder colonial em que se estava querendo fotografar à força. Agora essas pessoas têm família, casaram, o que certamente aconteceu mesmo, mas a gente não vê isso nos retratos antigos. Achei um trabalho muito bonito, de redenção mesmo”.
A essência deste trabalho veio dela mesma — ou, melhor, de onde ela veio. “O diálogo com minha ancestralidade é central para este trabalho. Reitero, também, a importância do Ver-o-Peso. O mercado representa um aspecto fundamental da minha orientação espiritual, especialmente por influência da minha avó materna, que trabalhava lá e se cuidava com as erveiras. Parto dele para discutir sobre minha origem familiar, minha espiritualidade, minha trajetória de vida e trabalho. Da mesma forma, ao me aproximar do município de Curuçá, especificamente da comunidade da Vila Araquaim, por influência de meu pai, investigo os rituais, a culinária e as cosmovisões locais que me afetaram neste caminho”.
A consciência e a definição profissional começaram a se definir na infância. “A Naiara sempre gostou de desenho, mas quando foi fazer a faculdade de arte eu não achava que seria uma boa ideia. Eu era professora, achei que ia querer outra coisa, direito, medicina… eu que queria, né”, diz a mãe, Clélia Jinknss de Castro. “Mas ela escolheu e, então, teve nosso apoio, meu e do pai dela, achamos que era o melhor pra ela”.
A filha tinha 21 anos quando entrou na faculdade. “Era uma faculdade privada e eu e o pai dela pagamos, eu vendia salgados na loja da minha irmã de confecções e calçados que eu tomava conta, vendida também pra todos os peixeiros no bairro, Terra Firme, que é cercado pelo rio Tucunduba, em Belém. A Naiara ajudava, fazendo os salgadinhos que aprendeu com a avó, canoinha, barquete, empada, monteiro-lopes”.
A mãe vez ou outra “passava a vista na faculdade” como fez a vida toda. E chegou a conversar com professores pra saber se tudo estava nos conformes, se o ambiente era seguro. O cuidado e a cumplicidade foram as principais alianças nas relações familiares e na construção intelectual.
A jovem aguerrida passou por momentos, que incluem a faculdade e uma pós-graduação no Rio de Janeiro, até se dar conta do debate que hoje lança — ou ajuda a lançar — sobre a postura não apenas de fotógrafos e também de pintores que retratam, por exemplo, trabalhadores e trabalhadoras. “É uma abordagem complexa”, diz, colocando muitas vezes os retratados como a ela própria. “A cor da minha pele é minha, mas a negritude é de uma coletividade”.
“Deste modo, reitero meu compromisso com minha negritude e com a pesquisa, que, não por acaso (mas pela luta), é fruto das políticas de ações afirmativas, às quais possibilitam a diversidade e pluralidade de identidades e estudos dentro da academia”, ressalta. “Nasci negra e ter consciência disso altera tanto a maneira como vejo o mundo quanto a forma como sou vista pelo outro. Sendo assim, o letramento racial é uma compreensão essencial para reconhecermos as desigualdades. Não se trata apenas do entendimento do negro ou do indígena, mas de toda a sociedade, especialmente daquela que carrega uma herança de um passado escravocrata”.
E o que diz incomoda, em seu lugar confortável, inclusive ela mesma, cada vez que se dá um clique no obturador. Uma de suas inspirações para essas reflexões é o fotógrafo João Roberto Ripper, conhecido por sua pedagogia “bem-querer”, em que ele compartilha o processo fotográfico em três momentos principais: o conhecimento pelas comunidades sobre todo o trabalho, o resultado das fotos com a aprovação estética dos fotografados e o segundo resultado que é a edição (coisas como cortes, seleção e divulgação). “Mesmo isso não é suficiente”, observa Nayara.
Ela ressalta que a discussão em termos atuais é muito difícil. É mais fácil então focar este debate em obras que já são de domínio público sem problemas de contestação judicial – e sem o cerceamento dos autores ou de grupos das artes e do fotojornalismo – por exemplo. “Pinturas como de Debret por muito tempo foram analisadas de forma ingênua, mantidas em capas de livros de história do Brasil. Mas o que parece uma cena pacífica oculta violências não questionadas, como crianças nuas no chão como se fossem animais de estimação”. Não é acaso, estudando esses quadros são notórias os cenários que se repetem, o que estabelece um “padrão”.
Segundo a foto-artista, realizados há mais de um século no Brasil, esses registros fotográficos – respaldados pela ciência, serviram de base para a construção de políticas racistas e contribuíram para a perpetuação de histórias hegemônicas. “Tu podes até dizer: ‘Ah, mas naquela época eles não pensavam nisso!’, o que pode ser verdade. No entanto, isso não diminui o fato de que esses fotógrafos atendiam a um sistema de colecionismo etno-antropológico que objetificava, tipificava e desumanizava seus retratados por meio dos carte de visite. Ou seja, impossível não os responsabilizar, ou mesmo, relativizar tais problematizações no contexto atual”.
A artista se propõe a repensar e reinterpretar imagens. “O tempo passou, mas a sociedade segue reproduzindo os mesmos estigmas e estereótipos que comprometeram e continuam a afetar a mim e minha família. Por fim, repito algumas perguntas e também, faço outras: Como utilizar a fotografia de um autor vivo sem a sua autorização? Como fazer pesquisa dentro de uma instituição que protege e assegura o privilégio de artistas brancos? Só podemos direcionar críticas a quem morreu há mais de 100 anos?”
O trabalho de Nayara é uma avalanche de questionamentos e críticas sociais. “São muitas perguntas, poucas respostas. A raiva, a indignação, a subestimação, o desencorajamento, as injustiças e as violências são sentimentos que os artistas afro-panorâmicos conhecem muito cedo. Engulo tais sentimentos, mas ponho para fora, o remédio é deixar sair. Vindo de onde eu vim, tendo a família e a mãe que tenho, não seria diferente. Meu comprometimento e amor pela pesquisa, minha terapia, as pessoas que me amam e cuidam de mim, minha espiritualidade, todos estão interligados. O que eu estou comunicando é que, ao invés de apenas me decepcionar, elaboro estes sentimentos e devolvo com pesquisa, com fontes, com afeto e cuidado, e reafirmo o combinado: combinamos de não morrer”.
(*) Cristina Ávila, jornalista.