Sara Damas, uma jovem mulher de 25 anos, especializada em pedagogia social
O início de tudo foi o muro. O simbólico muro na Esplanada dos Ministérios que separou a democracia e o período de ensaio do fascismo. Separou o desejo de liberdade e as intenções funestas de calçar de coturnos o país, como tentaram para esmagar a democracia. Dentro da Câmara dos Deputados — e exposto a alguns milhares de manifestantes na rua — em telões gigantes espalhados no gramado, retumbou um berro: “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. Os deputados votavam o impeachment da presidenta eleita pelo povo brasileiro.
Confira o artigo “A força das igrejas (no Sul)”, do professor, escritor e bacharel em direito Adeli Sell.
Era 15 de abril de 2016. “Eu acho que foi nesse momento que nasceu o bolsonarismo”, diz Sara Damas, uma jovem mulher de 25 anos, especializada em pedagogia social. “Nasceu naquele momento do voto de Jair Bolsonaro” — pontua ela, evocando um marco histórico. “Vi muitos cristãos saudarem o coronel Ustra. E foi assim que Bolsonaro foi conquistando seu público. Esse foi o início da fórmula que funcionaria: machismo, racismo, misoginia, um homem de bem que não gosta de viadagem, amava a família e a igreja”.
O coronel Ustra não era pavor somente de Dilma, a quem torturou durante a ditadura militar. Ele também é denunciado por tortura a crianças de 4 e 9 anos, deixadas sozinhas a assistirem os pais sendo torturados em um dos porões das unidades da repressão subordinas ao Exército.
Foi neste momento também que a pedagoga Sara, membra do Núcleo Evangélico do PT (NEPT) em Valparaíso de Goiás, cidade em que nasceu na divisa com o Distrito Federal, começou a se afastar da igreja. “Nasci em berço evangélico. Minha mãe é missionária e meus tios são pastores. A igreja pra mim sempre foi um espaço de amor, de acolhimento. Cresci participando de toda a estrutura da igreja. Muitos irmãos do campo progressista foram se distanciando. Me senti não querida, e passei um tempo pelo que tem sido chamado de desigrejação e eu chamo como antigamente, eu estava desviada”.
Vozes contra as contradições
Sara Damas conta que nunca ficou sem comunhão com sua religiosidade, “Jesus me motiva todos os dias”. A alternativa foi tentar se aproximar de “grupos de fé”, que não estavam conectados às novas tendências que começavam a ser seguidas por grande parte dos evangélicos. Ela precisou se identificar com líderes religiosos que contestavam essas posições, como o teólogo Caio Fábio, o pastor Henrique Vieira do PSol e o teólogo René Kivitz — que eram vozes que se opunham às contradições que tomaram conta das igrejas.
Logicamente, não foi apenas Sara Damas que se sentiu rejeitada e rejeitou o que antes era o ambiente familiar com o qual sempre se identificou. O pesquisador, escritor e teólogo Rodolfo Capler, que também é pastor, explica o que ele denomina de “fenômeno de evasão” da nova geração nas igrejas, ocorrendo por causa do posicionamento político e conservadorismo de muitos dirigentes religiosos, diante de uma juventude que rompe barreiras de antigos preconceitos.
Os desigrejados
Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em censo realizado em 2010 indicou que a categoria “cristãos evangélicos não determinados” somava 9,2 milhões de pessoas ou 21% dos evangélicos da época. Hoje há estimativas de que cheguem entre 16 milhões e até 20 milhões.
O termo expressa o momento pelo qual passou Sara Damas, vinculada a suas crenças, mas distante de qualquer igreja. Cenário em que pesquisadores dizem ser necessário levar em consideração os “telepregadores”, que se multiplicaram nas rádios e TVs e teriam atraído parte dos evangélicos que passaram a orar na frente da telinha. Também entram nas investigações o estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) que revelou que em 2021, dos 124 mil estabelecimentos religiosos no país, 52% eram evangélicos pentecostais ou neopentecostais, 19% evangélicos tradicionais e 11% católicos.
Os números revelam que cresce o número de pessoas que saem das igrejas, mas cresce também o número de igrejas. Não há ainda aprofundamento suficiente de pesquisas científicas para dar uma explicação segura. Mas, depois da orfandade que passou, Sara Dama encontrou sua turma de cristãos progressistas. “Tenho posição política explícita e firme desde os 14 anos”. Hoje congrega na Aliança da Fé Church, em Valparaíso, a qual se identifica como membra, frequenta semanalmente e participa do discipulado e do grupo de jovens.
Queremos nos sentir ouvidos
Mas, peraí. Não tá tudo resolvido. A jovem Sara Damas quer muito mais. Ela deseja que o PT avance neste debate. “As pessoas do nosso próprio campo político muitas vezes nos olham, a nós, evangélicos, de cima a baixo. A gente sente muitas vezes que nossa espiritualidade não é levada a sério. Eu vi isso no seminário nacional sobre realidade brasileira (realizado pelo partido nos dias 5 e 6 de dezembro em Brasília). Quando os evangélicos falaram, muita gente se mexeu na cadeira, começou a conversar, deu pra ver que não prestaram atenção. Mas a direita viu que era um espaço importante, e passou a investir nas igrejas. A arrogância distancia da base. Muitas vezes a gente se sente como se precisasse ser diminuído para caber no partido. A gente quer participar, se sentir ouvido e compreendido”, reivindica. “Sou do PT e faço parte”, ressalta.
Panfletando como antigamente
O coordenador do NEPT de Valparaíso e também vice-coordenador do núcleo de Goiás, o advogado Joaquim Filho, relata que os núcleos surgiram em 2015, e hoje estão em 20 estados do país, congregando filiados do partido e também simpatizantes progressistas. “Em Goiás temos dois, o de Goiânia que abrange todo o estado e o de Valparaíso. No país, realizamos assembleias nacionais e cultos religiosos virtuais, o mais recente contou com a presença da presidenta Gleisi Hoffmann. O núcleo nacional é composto por oito coordenadores, uma delas é a deputada federal Benedita da Silva (PT/RJ). O partido também conta com um setorial inter-religioso e congrega filiados e simpatizantes de todas as religiões desejadas”.
Valparaíso tem muitas igrejas evangélicas conservadoras. “Sofremos muitas discriminações. Mesmo assim, insistimos nessa missão. Nestas eleições conseguimos agendar uma reunião com o Conselho de Pastores do Valparaíso. Uma grande vitória. Fomos bem recebidos, o que foi um avanço. Mas ainda existe muito preconceito. Joaquim relata que o grupo conta com boletim informativo online, mas não abre mão da tradicional panfletagem em paradas de ônibus e bancos de praça. Impressos artesanais, feitos nas impressoras domésticas, “para difundir nossos ideais, visando sempre desmistificar este estigma de que evangélicos não votam em esquerdistas”, frisa ele.
É bom lembrar que, em 2012, a Professora Lucimar foi eleita prefeita pelo PT em Valparaíso com 56% dos votos do eleitorado. O Golpe ainda estava longe de acontecer, e claro que ela teve muitos votos de evangélicos tradicionais.
Lula, Dilma e pelo menos 7 leis que beneficiam evangélicos
“Depois que o Lula foi eleito para este terceiro mandato, muitos evangélicos têm se convencido de que não foi uma boa escolha ter apoiado aquele candidato. Isso nos permite maior penetração nas igrejas, embora ainda seja grande o preconceito. Mas tivemos muitos evangélicos que se decepcionaram com Bolsonaro. Um dos últimos foi o deputado Otoni de Paula, sobrinho de um dos grandes cantores gospel do Brasil, que é o Ozeas de Paula. Com a perda de influência bolsonarista, os evangélicos estão mais receptivos”, afirma Joaquim. Conhecido aliado de Bolsonaro, Otoni de Paula pediu orações pelo presidente Lula, agora em dezembro, quando foi submetido a uma cirurgia na cabeça.
“O presidente Lula e a presidenta Dilma já assinaram pelo menos sete leis a favor dos evangélicos desde o primeiro mandato dele, em dezembro de 2003, quando assinou a lei em que reconhecia as igrejas evangélicas como igrejas, pois antes não eram reconhecidas no CNPJ (cadastro nacional de pessoa jurídica) como igrejas, como tipos de associações, fundações, coisas do tipo. A legislação passou a ser chamada Lei da Liberdade Religiosa. Ele a sancionou com os pastores mais influentes da época assistindo, e sorridentes. Tem vídeos que mostram. E em outubro sancionou a lei que institui o Dia Nacional da Música Gospel, mais uma vez promovendo o trabalho evangélico. Joaquim cita ainda as Leis da Marcha para Jesus, Dia do Evangélico, Dia da Proclamação do Evangelho, Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa e Dia do Pastor”, relata Joaquim Filho.