Os crimes de Bolsonaro não são de modo nenhum perdoáveis ou atenuáveis, mas ele não é o produto de si mesmo. Ele so pôde e só pode acontecer porque sua existência, sua carreira, seu acesso ao poder e sua conduta nele ocorreram e ocorrem no contesto de uma situação mundial que não começou com a Covid, começou com o arrastão neoliberal há quarenta anos, mas se agravou muito a partir dela. Ou seja, acima e antes de Bolsonaro já existiam as condições que deram nele. Do Bolsonaro nativo e dos outros Bolsonaros que ainda infestam o mundo, mesmo depois da queda do maior deles, o Trump.
Bolsonaro foi eleito Presidente no ano em que nos Estados Unidos Trump, o mais radical e extremado dos neoliberais, chegava ao meio de seu mandato, posava de candidato inderrotável à reeleição e mantinha sua rotina e sua estratégia de confronto com o mundo e com adversários domésticos.
No Brasil, com uma economia e até uma história reflexas, sujeito ao impacto das ações de Trump, essa situação foi agravada ainda mais pela devastação empresarial e política provocada pela operação Lava Jato e a avassaladora cobertura que recebeu de sua maior cúmplice, a grande mídia brasileira – hoje arrependida e hostilizada por Bolsonaro.
Com esse atraso de dois anos do mergulho brasileiro na voragem do trumpismo-bolsonarismo, estamos vendo hoje o contraste entre nossa situação e a situação dos Estados Unidos depois da derrota de Trump. Em pouco tempo, o governo Biden acelerou consideravelmente a vacinação e outras medidas anti-Covid no país e agora até cidades como Nova York, que foi duramente atingida, voltam rapidamente à normalidade.
Em matéria de anormalidade, de atraso na vacinação, de UTIs lotadas, de número de mortes e de perspectivas sombrias de uma terceira onda da Covid antes de terminar a segunda, o Brasil está bem parecido com a India e cada dia mais diferente dos Estados Unidos. E não é por acaso: assim como Trump e Bolsonaro, o Primeiro-Ministro da India, Narendra Modi, é produto da arrancada mais extremista do neoliberalismo fundamentalista, do qual a figura sinistra e delinquente de Steve Bannon é o cérebro estratégico e anjo exterminador.
O que as pesquisas dizem no Brasil é o que diziam nos Estados Unidos na contagem regressiva para a eleição presidencial de lá em 2020: que o Presidente poderia ser derrotado na tentativa de reeleição. Lá como aqui o Presidente candidato à reeleição tumultuou a campanha, fez tudo para desacreditar a eleição e no fim tentou o golpe da invasão do Capitólio no momento da contagem dos votos do colégio eleitoral.
A Covid abriu os olhos até de economistas e empresários antes iludidos com as promessas simplórias do neoliberalismo e hoje os Estados Unidos vivem, em sua política interna, uma experiência muito próxima do New Deal do Presidente Roosevelt na década de 1930, quando também havia governos de extrema-direita como os de Hitler e Mussolini.
O novo New Deal de Biden já é definido como o fim da mediocridade neoliberal e uma inflexão de índole social e até socialista, independente de a política externa dos Estados Unidos ainda não ter dado mostras de reversão do hegemonismo exacerbado por Trump mas bem anterior a ele.
Em contraste com esses avanços, o Brasil testemunha na CPI da Covis tentativas cada vez mais estúpidas de sugestionar o público que acompanha os depoimentos pela TV. Na sessão desta quinta-feira, o senador bolsonarista Eduardo Girão tentou plantar a fake news de que a Coronavac, a vacina da parceria chinesa com o Butantan, do governo de São Paulo, é produzida a partir de fetos humanos abortados.
Essa é mais uma invenção do gabinete do ódio, do mesmo esquema que na eleição de 2018 inventou o kit gay e a mamadeira erótica com bico em forma de pênis.
Como já estamos em plena contagem regressiva da eleição presidencial de 2022, dá para avaliar desde logo o grau de obscurantismo e indecência a que podemos chegar daqui para a frente.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.