Nuestra América, neste momento de mudanças aceleradas no panorama mundial, está vivendo intensos processos de transformação que, em alguns casos, se tornam difusos e até regressivos e, em outros, se trata de experiências alentadoras de autogestão social e de fortalecimento institucional que é preciso complementar. Em qualquer caso, é imprescindível abordar tais fenômenos como expressões de um todo continental e saber aprender com eles, se libertando de avaliações e esquemas do século XX que transmudaram em nossa época, adquirindo por sua aplicação prática uma conotação muito distante de seu significado inicial.
Comecemos por analisar no profundo caso de Milei na Argentina, onde a maioria dos votantes, mais que outorgar respaldo a suas propostas, votaram com desespero contra um sistema clientelista manejado por “líderes” que, em vez de criarem cidadania, negociavam os votos dos “rebanhos locais” ante os políticos depredadores. Assim, um país dos mais ricos do continente, que chegou a se perfilar inclusive como potência regional, passou a um estado de prostração com uma taxa de pobreza que ultrapassava os 40% e uma inflação superior aos 100%. Sob este contexto, tanto gregos como troianos, responsáveis pelo desastre, não ofereciam uma alternativa confiável para os eleitores.
De tal forma que, quando apareceu o espetáculo de Milei com um serrote oferecendo acabar com estes males pela raiz fechando instituições e dolarizando a economia, a maioria eleitoral desesperada se abrigou em seus braços sem analisar as conseqüências que teria para eles mesmos [eleitores] a aplicação de seu programa econômico.
Dito em outras palavras, votaram contra o clientelismo e os privilégios de grupos enquistados no governo para se servirem de sua posição e não para servirem à população, que é o único e verdadeiro cliente que financia seus salários. Partidos que, em nome das necessidades reais dos trabalhadores, ao chegarem ao poder, amiúde, davam as costas [ao povo] com grandes negociações para seus dirigentes e até o maltratam nos balcões e na qualidade do serviço. Por isso, por sua prática oportunista, os slogans populistas perderam credibilidade e terminaram sendo rechaçados como palavras desgastadas.
Por outra parte, no México, o presidente Andrés Manuel López Obrador, à margem dos canais do velho sistema clientelista instaurado pelo PRI desde o século passado e apesar da existência de conflitos sérios de violência em alguns estados e municípios, tem sabido cumprir com as expectativas da população transferindo os recursos que antes eram saqueados pelos presidentes e ministros e pela rede de funcionários que se serviam em cascata de seus privilégios, aos idosos aposentadorias irrisórias ou carentes de aposentadoria, assim como a estudantes de escassos recursos econômicos para que não abandonem seus estudos. Com esses recursos, [AMLO], sem recorrer a novos endividamentos, recuperou as empresas petroleiras e energéticas e impulsionou a construção de grandes obras de infraestrutura que contribuem para a ampliação do mercado nacional. Tudo isso lhe permitiu conseguir conquistas políticas importantes que maximizaram sua autoridade e seu prestígio. Com sua locuções matinais tem conseguido um grande êxito, como exemplo continental, ao neutralizar os meios tradicionais a serviço da oligarquia. O prestígio de seu governo é tal que, a alguns meses de se cumprir o sexênio, seu partido Morena tem uma posição privilegiada frente às novas eleições.
Não obstante, alguns de seus projetos estratégicos, como o trem maia e o corredor interoceânico, têm provocado agressões graves ao meio ambiente; a insegurança pública persiste e se torna incontrolável em diversos pontos do território nacional; porém, talvez, seu déficit principal se manifesta no escasso fortalecimento das organizações da sociedade civil, as quais têm sido desalojadas da agenda pública por um estatismo asfixiante. O balanço global lança assim um panorama de claro-escuros que merece ser reforçado em seus aspectos positivos mediante um exercício autocrítico e uma reformulação dos eixos centrais nos quais se deve basear o processo de transformação.
Bukele, em El Salvador, conseguiu com energia, frente ao terror das “gangues”, restituir a autoridade do Estado e a segurança da cidadania. Um primeiro passo muito importante, que deve se complementar com uma política educativa e de capacitação empresarial que abra novos horizontes aos jovens. De igual forma, deve insistir em que o restabelecimento da ordem pública não deve implicar em sacrifício dos direitos humanos e muito menos se converter numa justificativa para estimular a concentração do poder em poucas mãos e na legitimação de práticas autoritárias que ponham em desentendimento o regime democrático.
Lula, no Brasil, retomou com firmeza as rédeas do Estado, deterioradas severamente pela administração de Bolsonaro e, se afastando das práticas clientelistas, está incorporando aos excluídos, através dos poderes locais, na formulação e implementação de políticas sociais redistributivas e integradoras. Junto com isso, os investimentos públicos nos setores industriais e agrários, sob uma perspectiva de longo alcance, estão modificando o perfil da economia brasileira e desencadeando sua potencialidade a fim de desempenhar um papel cada vez mais protagônico no novo mundo multipolar.
Petro, em Colômbia, tem se envolvido na Paz Total, num contexto onde suas iniciativas são sabotadas, tanto no parlamento e no âmbito do poder judiciário como pelas ações bélicas impulsionadas pelos grupos de interesse dos inimigos da paz. Sem dúvida, está avançando, ainda que lentamente, em outras reformas que lhe podem dar dividendos políticos que fortaleçam sua autoridade, como as reformas educativa, de saúde e a previdenciária.
No Chile, Gabriel Boric, tem sofrido, em parte por seu maximalismo, pelos embates de uma direita que tem sabotado a reforma constitucional e que tem suficiente força no parlamento para postergar suas iniciativas que poderiam enriquecer sua autoridade e capacidade de manobra e avanço.
Em suma, tal como se pôde apreciar neste breve esboço, nos diferentes países da América Latina há material suficiente para aprender [a partir] do que está sucedendo em nosso continente, porém ainda faz falta deixar de lado a visão fragmentada por país e os conceitos que identificam como progressistas a estruturas “populares” clientelistas, manipuladas por interesses corruptos de grupo. Em seu lugar há que impulsionar uma estratégia política acumulativa da mudança que forme cidadãos educados e capacitados ao redor de organizações autônomas, de tipo comunitário, associativo e solidário.
(*) Por Miguel Sobrado y Juan José Rojas , Catedrático Universidad Autónoma de Chapingo. Tradução > Thaise Diamantino Coelho & Joaquim Lisboa Neto
Biblioteca Campesina, 9fev2024