Confucionismo na China e a Governança: a complexidade única do pensamento chinês no século 21. Por Felipe Maruf e Pedro Augusto Pinho no site do Monitor Mercantil
Anne Cheng, em História do Pensamento Chinês (1997), escreve: “O pensamento chinês não procede tanto de maneira linear ou dialética e sim em espiral. Ele delimita seu objetivo, não de uma vez por todas mediante um conjunto de definições, mas descrevendo ao redor dele círculos cada vez mais estreitos. Isso não é sinal de um pensamento indeciso ou impreciso, mas antes da vontade de aprofundar um sentido mais que de esclarecer um conceito ou um objeto de pensamento.”
Cheng ainda explica que falta no pensamento chinês a teorização, como encontrada no pensamento ocidental à maneira grega ou escolástica ou em qualquer elaboração decorrente de doutrina religiosa. “Não há verdade absoluta e eterna, mas dosagens. Daí resulta que as contradições não são percebidas como irredutíveis, mas como alternativas”. Em vez de termos que se excluem, veem-se oposições complementares que admitem passar do indiferenciado ao diferenciado, numa transição imperceptível.
Neste sentido, a dialética ocidental, arquitetada por Hegel, é a única que possui característica semelhante, e, por isso mesmo, jamais foi sistematizada enquanto organização do poder no Ocidente, sequer compreendida, seja pelos seus supostos adeptos, os marxistas, seja pelos seus antagonistas, os popperianos da “sociedade aberta”.
Esta característica de aprofundamento do conhecimento se transfere para a complexidade das decisões da governança, que envolvem questões externas à capacidade do que decide (individual ou coletivamente), tais como as relativas aos fenômenos da natureza, as implicações políticas, sociais, econômicas no meio e fora do âmbito da governança.
Muito importante é a capacidade de usar as manifestações contrárias para enriquecer a alternativa decisória. Este é o sucesso do mundo multipolar, onde são descartadas as decisões impositivas, colonizadoras, pelas consensuais, harmônicas.
Antes de tratar da governança chinesa no século 21, é necessária breve síntese do que legaram Lao Zi e Confúcio, na designação chinesa Kong Fu Zi (Mestre Kong), 500 anos antes da era cristã.
No milênio que antecedeu a Era Cristã, surgiram quatro caminhos que deram origem ao pensamento humano. Formados, grosso modo, no mundo grego, no monoteísmo hebraico, no hinduísmo e no confucionismo.
A grande diferença do confucionismo dos demais é a origem humana, diferente da divina, extraterrena, dos demais. E por ser também o único que, pela primeira vez na história do pensamento humano, propõe uma concepção ética para o ser humano, pelo próprio homem.
Duas palavras sintetizam este pensamento: “tao”, que significa caminho, e “te”, a virtude. Se no caminho o homem constrói o conhecimento, a soma das verdades, ela só terá sentido se o homem tiver o sentido moral da existência.
No confucionismo não se esperam recompensas, neste nem em qualquer outro mundo. Um milenar conceito taoísta vem da enigmática figura de Tzu Lu que indaga: como os espíritos devem ser servidos? Ao que Confúcio responde: se não sou apto para servir os homens, como posso servir aos espíritos.
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Inicie-se com esta questão a governança na China. Trata-se de servir seu povo. “A posição do povo como dono do país é uma característica inerente à política democrática socialista” (Relatório do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China (PCCh), 2017).
Para que se torne efetiva esta conclusão, diversas medidas devem ser adotadas. E elas começam a se formar a partir de 1919.
O Tratado de Versalhes, confirmando ter sido a 1ª Grande Guerra um conflito europeu, não mundial, e pela expansão colonial, principalmente com a entrada tardia da Alemanha e da Itália, cujas unificações se deram em 1871, obrigou a China a transferir territórios para o Japão. Fato que, em 4 de maio de 1919, levou professores e estudantes de Beijing a saírem às ruas para protestar. Rapidamente tomou o país, atingindo Xangai, Cantão e outras cidades importantes, prolongando-se durante um ano e meio. Com este movimento, o proletariado chinês passou a aparecer no movimento político do país.
Que se atente ao fato de já existir na China um proletariado suficientemente numeroso para se fazer presente na história. O que desmente a visão, condescendente, mas ainda assim imperialista, de que a China, no início do século 20, era um país “atrasado”. Não era atrasado, era subjugado, que são contextos diferentes.
Um país com grandes centros industriais e toda uma integração territorial que remontava a milênios jamais poderia ser “arcaico”. Subjugado, sim, pela força das armas estrangeiras, mas disposto a tomar de volta o que lhe é de direito pela afirmação nacionalista do seu existir, o que efetivamente era o objetivo dos trabalhadores e de outros setores sociais chineses naquele momento.
O Movimento de 4 de Maio constituiu a mudança da revolução democrática do velho tipo para a revolução de nova democracia e possibilitou a propagação do marxismo-leninismo, preparando a fundação do Partido Comunista da China (julho de 1921).
Vê-se a entrada do ocidente, pelas próprias mãos chinesas, com o marxismo, mesmo com a sinização promovida por Mao Tse Tung, líder da Revolução Chinesa de 1949 e seu primeiro dirigente.
Na verdade, desde o fim do século 18/início de 19, o pensamento chinês foi mais intensamente confrontado com o ocidental.
Coincide com a expansão do capitalismo europeu não mais pela “mão divina” – jesuítas em 1582 – mas pela industrialização e pela abertura na sociedade de classes, consequência da Revolução Francesa (1789).
Episódio aparentemente sem importância – a arrogância do embaixador Lord MacCartney perante o imperador Qianlong – deu início a animosidades que levam à Guerra do Ópio (1839), e marcam a derrocada do Império e dos reinados manchus: Qianlong (1736-1796), Jiaqing (1796-1820), Daoguang (1820-1850), Xianfeng (1850-1861), Tongzhi (1861-1875), Tzu Hsi (1875-1908), e Xuantong (1908-1912).
A tradição chinesa dos letrados, assessores filósofos dos dirigentes, sofre com o contato ocidental. Surge a corrupção e o imobilismo burocrático que marcam o início do século 19, na governança de Jiaqing.
Ao término da I Guerra do Ópio (1842), as potências ocidentais obrigam os chineses à abertura dos portos aos produtos estrangeiros e a conceder numerosos privilégios e direitos. Neste momento Wei Yuan (1794-1857) conclui seu “Memorial” (“Sheng wuji”), que propõe renovação de armas, “reprimir os bárbaros usando os meios dos bárbaros”, ter como alvo potencial chinês a conquista da Índia britânica, e a reforma institucional. Em 1856 começa a II Guerra do Ópio, envolvendo a Grã-Bretanha e a França, que durou quatro anos.
O período que vai das guerras do ópio até 1919 é conhecido como o século das humilhações.
O confucionismo passa a ser alvo de severas críticas por deixar o país sem defesa em face das agressões ocidentais e nipônicas. Surge a Rebelião Taiping (1851-1864), ao sul, e dos Nien (1851-1868), ao norte, incêndio no Palácio de Verão (Jardins da Perfeita Claridade), revolta da minoria muçulmana, dos Boxers (1899-1901), e, por força do Tratado de Nanquim, que pôs fim a 1ª Guerra do Ópio, é criada a Bolsa de Valores de Xangai, Shanghai Stock Exchange (SSE).
Na passagem do século 19 para o século 20 surgem duas iniciativas que procuram absorver o ocidente no pensamento de Confúcio, a de Liang Qi Chao (1873-1929) e de Tan Si Tong (1865-1898).
Liang busca o regime parlamentar, os direitos sociais e, sobretudo, a igualdade dos sexos, que lhe pareciam o caminho para o reerguimento chinês. Tan se volta para as religiões, a soma de elementos do budismo, da espiritualidade cristã, com um novo confucionismo. “Para mim é o conhecimento e não a ação que tem mais valor. O conhecimento está da alma, a ação no corpo” (Estudo sobre a humanidade, 1896).
Na China vivem 56 grupos étnicos, mas os “han” constituem 91% da população. Portanto o nacionalismo chinês, de algum modo, está associado à etnia, e guarda certo ressentimento dos manchus, o segundo mais populoso entre as minorias e que governou a China, e, sobretudo, a desconfiança dos estrangeiros.
Nesta transição do século 19 para o século 20, encontram-se os letrados em tal estado de perplexidade que propõe até a compreensão de que a herança intelectual não se dirige aos “han”, mas ao mundo.
“Os Anais das Primaveras e Outonos não estavam destinados a um só país, mas ao mundo inteiro; não valiam para uma só época, mas para a eternidade” (Liang).
Pode-se entender o marxismo como resposta a estas perplexidades, o que explicaria sua ampla e geral aceitação pelos chineses, a partir da Longa Marcha de Mao Tse Tung, 12 mil e 500 quilômetros, entre 16 de outubro de 1934 e 20 de outubro de 1935, em condições extremamente difíceis.
A governança sob o Partido Comunista Chinês, dirigido por Mao, pouco diferia dos países comunistas após a 2ª Grande Guerra. E a liderança da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), malgrado os inegáveis êxitos nos campos da tecnologia e das melhores condições de vida, sem distinção para todos cidadãos, acomodava-se na burocracia partidária.
Os dez anos – 1966 a 1976 – da Revolução Cultural Chinesa ainda não encontraram análise abrangente. Chama a atenção o desrespeito com que tratou o passado e as instituições, e até mesmo os dirigentes chineses reconhecem prejuízos à educação, à produção, à cultura, enfim, ao país. Porém, pode-se avaliar como a tentativa bem sucedida de impedir a acomodação e corrupção burocrática, como ocorreram em outros países comunistas e os levaram ao retorno da governança capitalista.
De todo modo, as críticas internas à Revolução Cultural possibilitaram a abertura econômica da China nas últimas décadas do século 20.
Anne Cheng coloca a questão: “Se modernização significa necessariamente ocidentalização, há um risco real de alienação e de perda da identidade cultural?”
Xi Jinping dá a resposta no discurso “Concretizar uma sociedade moderadamente próspera e realizar o sonho chinês”, antes do 19º Congresso Nacional do PCCh.
“O socialismo com características chinesas é o tema de todas as teorias e práticas do nosso partido desde o início da reforma e abertura em 1978. Todo partido deve erguer bem alto a grande bandeira do socialismo com características chinesas e ter firmes convicções no caminho, nas teorias, no sistema e na cultura do nosso socialismo para garantir o avanço vitorioso das causas do Partido e do Estado por caminho correto”.
Devemos ter em mente as características das diferentes fases do desenvolvimento do nosso país e o desejo do povo por uma vida melhor, formular novos delineamentos, estratégias e medidas e continuar promovendo o desenvolvimento coordenado da economia, política, cultura, sociedade e ecocivilização e as ‘quatros disposições estratégicas integrais’ – a conclusão da construção integral de uma sociedade moderadamente próspera, o aprofundamento integral da reforma, a administração integral do país conforme a lei e a administração integral e rigorosa do Partido – para conquistar a vitória decisiva na construção da sociedade que desejamos e a grande vitória do socialismo chinês, bem como lutar incansavelmente para concretizar o sonho chinês da grande revitalização da nação
A China confuciana vai além do “tao” e do “te”, claramente referidos neste pequeno trecho de Jinping, também se curva aos ritos e às regras que têm de estar de acordo com o tempo.
“Quando o Caminho prevalece no reino, fale e aja destemidamente e com altivez; quando o Caminho não prevalece, aja destemidamente e com altivez, mas fale com reserva e de modo suave” (Confúcio, Analectos, 14, 3).
Daí o “socialismo de mercado”, fórmula confuciano-dialética que exprime a utilização dos mecanismos de concorrência em favor do planejamento estatal e vice-versa. O desenvolvimentismo chinês, assim, supera a dicotomia mercado x Estado, em voga no Ocidente neoliberal, e resgata a noção da economia como economia política, a serviço dos interesses maiores do soberano. Uma vez que a China não é Estado-nação e sim Estado-civilização, o socialismo de mercado desponta como afirmação da tradição histórica no contexto das novas tecnologias e requisitos geoeconômicos e geopolíticos da soberania.
A democracia chinesa, da mesma forma, não tem a mesma estrutura eleitoral das ocidentais. A ênfase está na participação. O Relatório do 19º Congresso do PCCh reiterou que o sistema de assembleias populares constitui o arranjo político fundamental que integra, organicamente, a posição do povo como dono do país com as lideranças partidárias e a administração da República Popular da China.
É preciso estar seguro que o povo exerce seu poder pelo sistema das assembleias, espalhadas por todo território do país, e que seus comitês permanentes exerçam de modo correto e democrático suas funções e aperfeiçoem os sistemas organizacionais e executivos.
O Partido Comunista da China recebe anualmente milhares de candidatos a seus quadros, que passam por criteriosa seleção para serem admitidos. Em 2020, os membros do PCCh representavam o dobro de pessoas das cinco maiores etnias na China (zhuang, manchu, hui, miao e uigur), e dez vezes dos mongóis e tibetanos residentes no território chinês.
Não existe partido político no mundo, exceto na Índia, que tenha cerca de 10% da população de filiados, como no PCCh. É a democracia participativa que sustenta a governança da China.
(*) Por Felipe Maruf Quintas, doutor em Ciência Política, e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.
Fonte: Monitor Mercantil
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