Exploração das Governanças na Idade Média: tomismo, divindade e transformações sociais.
Como se observa em diversos momentos da história das sociedades humanas, há progressos e retrocessos, momentos de grandeza e momentos de decadência. Confúcio (552 a.C.), no declínio da realeza Zhou, ganhou seu lugar na história pela reflexão do homem sobre o homem, na aposta no homem. Mais de 1800 anos depois, com o doutor da Igreja, Tomás de Aquino (1225-1274), é colocada a questão dos efeitos do governo divino. O homem passa a ser um servo de Deus.
Na Suma Teológica, a questão 103 trata do governo das coisas em geral, onde encontramos a lógica aristotélica “quando se entra numa casa bem arrumada, esta arrumação ordenada permite perceber a presença orientadora do senhor da casa”.
Mas quem é o senhor da casa, senão aquele que é o princípio e o fim de todas as coisas?
Os deuses que os homens adoravam, reverenciavam nos primórdios da História, eram seres vivos e mortos que faziam parte do seu cotidiano, de reis que eram divinizados, até que surgiu o monoteísmo hebraico.
Lá pelo ano 2000 antes da Era Cristã, grupo semita, cercado de reinos e poderosos vizinhos, ricos, habilidosos e/ou guerreiros – egípcios, caldeus, hititas, sumérios, fenícios, babilônios – que há muito não mais existem, para se considerar igualmente importante, criou um Deus só para eles: Javé ou Jeová. Foi o primeiro povo monoteísta da História e sua religião e as diversas que dela surgiram influenciaram profundamente as governanças da sociedade, e ainda hoje o fazem.
Pode-se entender que o catolicismo, com o Novo Testamento e a Igreja Católica, de São Pedro, foi de enorme influência na governança europeia e difundida como religião dos colonizadores, pelo mundo.
O catolicismo proporcionou unidade espiritual à constelação política da Europa medieval. Mais do que isso, operou como elemento de transcendência, dotando os governantes e governados da época de sentido superior de vida e de sociedade, o que, se não impediu a injustiça e a tirania, ao menos as mitigou, atribuindo-lhes o selo da ilegitimidade e estabelecendo os fundamentos éticos de justiça pelos quais até hoje se luta, de forma mais ou menos secularizada mas, de todo modo, cristãmente originada.
Na “Suma Teológica” três questões da 1ª Parte (103,104 e 105) tratam do “Governo Divino”.
O governo das coisas em geral
Do artigo I, da Questão 103: “Dessa forma, a necessidade natural das criaturas demonstra o governo da divina providência”.
A ideia que se impõe é que Deus não age como um fator externo, mas “de dentro” dos homens. Faz parte de sua natureza, cabendo ao Divino assegurar o auxílio que o homem necessita para bem realizar o seu papel de agente, cuja existência se deve a Deus, para cumprir aquilo para o qual foi criado: agir em nome do Criador.
Pode-se considerar até que ponto esta governança divina limita a capacidade do homem e o faz cometer os maiores horrores como as guerras santas, cruzadas, morte aos infiéis, pecadores, ignorar outras culturas nas catequeses e as inquisições.
Tal é a leitura feita pelos iluministas. Porém, a própria crítica humanista por eles estabelecida às governanças medievais era mais cristã do que supunham, pois se baseava na dignidade intrínseca do ser humano, idéia que somente ganha foro universal com a mensagem de Cristo, dirigida a todos indistintamente.
Se o pecado ou o crime não deriva das relações na sociedade, mas do cumprimento e da obediência aos desígnios celestes, a possibilidade de salvação ou de condenação não está neste mundo. Facínoras em nome de Cristo e da Igreja nunca faltaram, porém eles nunca foram legitimados pelo conteúdo profundo do sagrado vigente.
Ao discorrer sobre esta questão: o fim do governo do mundo é algo exterior ao mundo, Tomás de Aquino afirma que a resposta está no livro dos Provérbios – “o Senhor fez tudo para si próprio”. E conclui: “Deus é exterior a toda ordem do universo. Por conseguinte, o fim das coisas é um bem extrínseco”. Porém, como existe a hierarquia, a ordem que se impõe na sociedade, é necessário separar pelo critério finalista o que obter e sua governança.
É EVIDENTE QUE O BEM TEM UMA RAZÃO FINALISTA. O FIM PARTICULAR DE UMA COISA É UM BEM PARTICULAR, ENQUANTO UM BEM UNIVERSAL DE TODAS AS COISAS É UM BEM UNIVERSAL.
Assim, Tomás de Aquino introduz um novo questionamento: há um único governo no mundo? E a resposta introduz a dialética.
Se existe conflito e desacordo entre as criaturas é prova da existência de contrários e cita o livro do Eclesiástico: “É sempre melhor estarem dois juntos do que um só”. Logo o mundo estaria governado por vários. Mas o governo do mundo nada mais é do que a condução dos governados para o fim, que é um bem. Assim, a intenção daquele que governa a multidão é a unidade e a paz. E o governo do que é melhor só pode ser obra de apenas um governante.
Esta ideia do mundo unificado e hierarquizado coloca a visão tomista na organização da sociedade. O mundo das naturezas prossegue para um fim único ao longo de conflitos – que são conduzidos para fins imediatos. Mas todos convergem para o fim universal, único, de Deus.
O efeito do governo leva à resposta de Tomás de Aquino, que transcrevemos da Suma Teológica, Questão 103, artigo 4:
“O efeito de uma ação pode ser considerado a partir de seu fim, pois é pela execução que se consegue alcançar o fim. O fim do governo do mundo é o bem essencial, e todas as coisas tendem a assimilá-lo e dele participar”.
Porém o efeito do governo pode ser aceito ou compreendido de três maneiras: a partir do próprio fim, a partir das coisas que levam as criaturas à assimilação divina, e pelos efeitos do governo divino, que podem ser tomados caso a caso e são, portanto, inumeráveis.
E Tomás de Aquino já se precavia contra acusação de imobilismo ao afirmar que dois eventos eram estabelecidos por Deus: da conservação e da transformação, “na medida em que uma coisa é movida para outra melhor”.
Pode acontecer algo fora do governo divino ou oposto a ele?
Paulo, na Carta aos Coríntios dispõe: “Deus não se ocupa de bois”. E Tomás de Aquino adiciona: “Cada um tem de cuidar das coisas confiadas a seu governo”.
Deus é causa universal, não particular de todo ente. E, prossegue argumentando: “Sob o Sol estão as coisas que, conforme o movimento do Sol, são geradas ou se corrompem. Em todas elas se encontra o acaso; o que não significa que tudo o que nelas acontece seja casual, mas que em cada uma delas pode-se encontrar algo casual. O próprio fato de que se encontre em tais coisas algo casual demonstra que estão sujeitas ao governo de alguém”.
De quem mais estão sujeitas as coisas? “Fora da ordem de alguma causa particular é possível que aconteça algum efeito, não fora da ordem de uma causa universal”.
Aqueles que pensam, falam ou agem contra Deus não se opõem totalmente ao governo divino, porque mesmo os pecadores tendem para algum bem. Mas se opõem a um bem determinado que lhes é conveniente por natureza ou por estado. E, por isso, são punidos por Deus com a justiça.
O mundo medieval europeu
Paul Vignaux (1904-1987), filósofo e medievalista francês, em La Pensée au Moyen Âge, 1938, escreve: “Ao lado do Sacerdócio e do Império, a Universidade surge aos contemporâneos como uma das três forças da Igreja Universal”.
A Universidade compreendia quatro “faculdades”: direito, medicina, artes e teologia.
Conforme Tomás de Aquino, a teologia considerava as coisas e a significação das palavras, porque para que se alcançasse a salvação; não se necessitava apenas da fé, mas relacioná-la à verdade das coisas, que estava nas palavras, nos nomes. Era o pensamento aristotélico que mais duradouro influenciou o pensamento ocidental.
Recordemos que o pensamento chinês não procede tanto de maneira linear ou dialética e sim em espiral. Ou seja, não trata do significado das coisas, das palavras, mas de todos os relacionamentos que ela permite, das variedades de situações em que encontramos um pictograma, e que alteram seu significado. Numa concepção existencialista, pode-se dizer que não há essências, há existências, diferentemente de Aristóteles e Tomás de Aquino.
Aristóteles e sua revisão tomista serão tão importantes para a governança ocidental quanto Lao Zi e Confúcio para a oriental.
Vignaux afirma que os medievais não conheceram Platão como se debruçaram sobre Aristóteles (“o homem é um animal de linguagem”), a quem denominavam “O Filósofo”. “Liam seus livros nas escolas não apenas para aprender a arte de discutir como para compreender a natureza das coisas”.
Aristóteles e seus seguidores, que tratam mais dos textos do que das coisas aos quais se referem, tiveram muitas traduções, que levou seu pensamento a influenciar tanto os pensadores árabes quanto judeus.
Porém é no século 13, em Tomás de Aquino, que o homem adquire consciência da herança dos antigos, da filosofia aristotélica, e surge o conflito entre o humano e o divino, a natureza e a graça, que não conduz necessariamente ao conflito, mas leva, também, ao equilíbrio, à acomodação, à harmonia que será fundamental para manutenção das hierarquias, das governanças com as transformações que ocorrerão com o descobrimento do Novo Mundo.
A sociedade medieval se transforma entre os séculos 12 e 15. Esta sociedade é melhor designada como estamental, ou seja, cada pessoa estava presa à sua condição que compreendia o senhor, que possuía a terra, detinha o monopólio dos poderes político, militar e “judiciário”, e mantinha servos. Havia, ainda, os “vilões”, homens livres que deviam obrigações aos senhores, embora pudessem transitar pelas propriedades, os escravos, empregados domésticos, que não podiam ser cristãos, e os ministeriais, que exerciam a administração a serviço dos senhores, e se classificavam, dependendo da extensão das propriedades, em bailios, as menores, e senescais, vários domínios de um mesmo senhor.
Os mosteiros tinham a mesma estrutura de domínio dos senhores feudais, ao que se agregava o monopólio da cultura e, principalmente, da interpretação da realidade social, sempre numa perspectiva religiosa, como da compreensão tomista, aristotélica. E era a única capaz de conduzir o homem à salvação eterna.
O catolicismo ensina que todos são irmãos, ainda que, na prática social, sempre imperfeita do ponto de vista do Absoluto, aceita que uns poucos sejam “mais irmãos” do que outros (!).
No século 13 começa a transformação da Idade Média, que Vignaux, na obra citada, denomina da “Diversidade do Século 13”.
Além da mística especulativa, do provável na metafísica, das crises da física aristotélica, surge um voluntarismo que domina tanto a vontade de Deus quanto a dos homens. Para os franciscanos Escoto (Irlanda, 815 a 877) e Occam (Londres, 1285-1347, Munique), a união de Deus com os homens se opera por um ato de vontade.
Os sucessivos embates entre o poder temporal dos reis, príncipes e imperadores e o poder secular dos sacerdotes e do Papa, bem como a proliferação de seitas e cismas dissidentes do papado, resultaram no declínio da hegemonia dos Papas. A modernidade inicia-se com o esvaziamento da unidade espiritual europeia e a transformação dos reinos estatais em unidades territoriais autossuficientes do ponto de vista até mesmo religioso, haja vista o poder espiritual concedido pela reforma protestante aos reis que a ela aderiram, com a criação de igrejas estatais na Inglaterra e na Escandinávia.
Ao que se adicionam as transformações sociais e econômicas pelas importações asiáticas e pela emergência política e econômica dos burgueses, que se tornaram aliados e financiadores dos reis e príncipes na busca deles pela expansão do poder territorial e pela centralização administrativa.
Um exemplo foi o conflito entre Felipe, o Belo, rei de França, e o Papa Bonifácio 8º. Bonifácio exigia não pagar impostos ao poder temporal e exigia o reconhecimento da supremacia do poder religioso sobre os reis. Em 1303, edita a bula “Unam Sanctam” que resulta na prisão e morte, no mesmo ano, de Bonifácio 8º. Em 1305, Clemente 5º inicia uma série de papas sob tutela dos reis de França, os “Papas de Avignon”.
Se com o fim da Idade Média a unidade do cristianismo chega ao fim, a influência do pensamento religioso, do misticismo se entranha nas governanças ocidentais. Com a Reforma de Lutero (1517) e uma sequência de interpretações e de interesses, por vezes meramente econômicos, que acompanham as religiões e as governanças, as relações igreja-poder permanecem até o século 21.
Contudo, tais relações sofrem paulatino processo de secularização que, ao fazer do homem fim em si mesmo, se de um lado ampliou seus poderes de intervenção política, de outro fechou as portas à transcendência e enfraqueceu as bases éticas do poder, facilitando o trabalho dos totalitários de todo tipo, inclusive dos econômico-financeiros, cujo governo é tão absoluto quanto não-declarado, oculto por trás de governos de fachada.
(*) Por Felipe Maruf Quintas, cientista político, e Pedro Augusto Pinho, administrador aposentado.
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