Na quinta-feira (8) à noite o Ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo, determinou ao Presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, que instale a CPI da Covid requerida por 31 senadores, mais de um terço do Senado, para apurar o comportamento omisso do governo federal diante da pandemia.
Na sexta-feira à noite, noticiou-se que o governo federal dera início, pelo site do Palácio do Planalto, a uma campanha de esclarecimento, recomendando o distanciamento social e o uso de máscaras. Foi a futura CPI que empurrou o governo federal a iniciar a campanha, que surge timidamente mais de um ano depois do momento em que deveria ter sido iniciada com todos os recursos a que o governo pudesse apelar.
Minutos antes da decisão de Barroso sobre a CPI, o Supremo tinha decidido por 9 votos a apenas 2 que a realização de cultos religiosos presenciais pode ser proibida temporariamente para evitar a proliferação do vírus. Tratava-se, no caso, de um decreto do governo de São Paulo, iniciativa que deveria ser tomada pelo governo federal, com validade para todo o país, pelo menos na proximidade da Semana Santa.
É ao Supremo, em certos casos a outros órgãos da Justiça, e a governos de Estado e prefeituras municipais que tem cabido a iniciativa de medidas que deveriam ter sido tomadas, em tempo oportuno, a curto, médio ou longo prazo, pelo governo federal, independente de sua orientação ideológica, de esquerda, de direita ou de centro, em defesa de toda a população do país.
A omissão sistemática do governo federal torna o direito à vida (e, portanto, todos os outros direitos) uma loteria que depende da localização geográfica da pessoa. Quem mora em Araraquara, São Paulo, onde as medidas adotadas pela prefeitura reduziram ao mínimo os danos do vírus, passou a ter mais direitos que o morador de Bauru, também em São Paulo, onde a prefeita promoveu aglomerações perigosíssimas por intermédio de uma igreja fundamentalista de propriedade de sua família.
O Supremo tem sido acusado de ativismo judicial, de se meter onde não deve, mas ainda bem que o tem feito, desde a decisão de mais de um ano atrás que reconheceu a competência concorrente de Estados e municípios para adotar medidas de proteção coletiva à vida. Se tivesse prevalecido a pretensão de Bolsonaro, de tal competência ser exclusiva do governo federal, o Brasil inteiro ficaria à mercê da loteria de Bauru e a bem-sucedida experiência de Araraquara não teria sido possível.
As iniciativas de um governo central em defesa da vida são insubstituíveis nesse enfrentamento em escala sem precedentes com o coronavírus e a próxima existência da CPI da Covid, se o governo não conseguir frustrá-la, vai empurrar Bolsonaro a outras iniciativas que deveria ter empreendido há muito tempo, mas não vai suprir a liderança que ele se nega a assumir. Ele, entre outras coisas, poderia ter-se vacinado, dando exemplo a milhões de incautos que continuam a segui-lo em sua briga infantil com a realidade. No recente jantar com empresários em São Paulo ele não precisava sugerir ao novo Ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que se livrasse da máscara que usava.
Uma situação como a atual, que ninguém imaginaria mesmo depois da eleição de alguém psicologicamente perturbado como Bolsonaro, vai exigir que o país repense todo o seu modelo político. Vamos continuar com um presidencialismo em que o Presidente da República só pode ser afastado pelo longo e lento processo do impeachment? Vamos continuar com a possibilidade de reeleição, que leva pessoas como Bolsonaro a só pensar nela desde o primeiro dia de mandato? Vamos continuar com um sistema eleitoral que produz a fragmentação partidária de hoje e suas possibilidades de chantagem política em benefício de minorias sem escrúpulos?
Dos Estados Unidos tivemos em janeiro o exemplo de uma cláusula constitucional recente que chegou a ser sugerida mas não chegou a ser usada quando Trump, em fim de mandato, açulou bandos de seguidores seus a invadirem o Capitólio de Washington, onde o Senado realizava a contagem final dos votos no colégio eleitoral que confirmaria a vitória de Joe Biden.
Lá o Vice-Presidente pode assumir a Presidência em certas emergências com o apoio da maioria do gabinete, cujos membros não são simplesmente nomeados pelo Presidente, são aprovados pelo Senado e portanto dispõem de uma espécie de mandato.
Aqui a Constituição diz que o Vice pode substituir o Presidente em seus impedimentos, mas nada prevê quanto a esses impedimentos. Na prática eles só ocorrem por iniciativa do próprio Presidente ou com seu consentimento, quando, por exemplo, resolvem viajar ao exterior ou submeter-se a alguma cirurgia que exija anestesia geral.
O caso de Bolsonaro é indiscutivelmente de impedimento, mas não existem mecanismos constitucionais para declará-lo.
(*) José Augusto Ribeiro – Jornalista e escritor. Publicou a trilogia A era Vargas (2001); De Tiradentes a Tancredo, uma história das Constituições do Brasil (1987); Nossos Direitos na Nova Constituição (1988); e Curitiba, a Revolução Ecológica (1993). Em 1979, realizou, com Neila Tavares, o curta-metragem Agosto 24, sobre a morte do presidente Vargas.